Há, a propósito do leilão cancelado da
coleção de 85 obras de Miró, três debates diferentes: o jurídico, o
político e o financeiro.
O jurídico parece esclarecido: apesar do Tribunal
Administrativo ter recusado a providência cautelar do Ministério Público
para parar a venda, confirmou que os procedimentos impostos pela Lei de
Bases do Património Cultural não tinham sido cumpridos e que a
"expedição das obras é manifestamente ilegal". As obras viajaram
ilegalmente para Londres, onde estão expostas, sem terem a autorização
da Direcção-Geral do Património Cultural para saírem de Portugal. Uma
autorização que, é bom lembrar, não é um mero procedimento burocrático.
Defende o país do saque.
Nestas condições, só por uma completa
irresponsabilidade é que a Christie's realizaria o leilão. Cabe à
leiloeira verificar que tudo está em ordem. Não verificou e só ela pode
ser responsabilizada pelo cancelamento no próprio dia. Ela e,
obviamente, a Parvalorem, empresa do Estado que ficou com as ruínas do
BPN e que tentou vender este espólio contornando uma lei que é, e bem,
em todos os países desenvolvidos, muito restritiva no que toca ao
comércio de obras de arte. Tendo sido a Christie's a cancelar o leilão,
não vejo como possa vir a exigir a indemnização contratual.
Agora a questão política. Neste caso, política
cultural. A coleção de Miró não ia ser incinerada ou destruída. Ia ser
vendida, coisa que acontece regularmente a obras de arte. Não haveria,
na minha opinião, uma perda para a cultura. Quanto a Portugal, perderia
as obras que faziam parte do espólio de um banco em troca de dinheiro. E
é costume nada vergonhoso estarem entre as coisas que se vendem obras
de arte. Como sabem os galeristas.
Estes quadros são, para o Estado português, um
ativo. Foram comprados ao colecionador japonês Kazumasa Katsuta. E estão
tão bem aqui como em qualquer outro lugar. Ao contrário dos quadros que
julgo que o BPN ainda tem de Vieira da Silva e Júlio Pomar, não há
entre o autor ou estas obras e Portugal nenhuma relação especial. Nem
especial, nem outra, para dizer a verdade. Não é património nacional. As
obras foram compradas por um banco, como investimento, que foi
nacionalizado e calhou que o Estado ficasse com elas. Com elas pode, sem
ferir nenhum princípio ético, político ou legal, fazer uma de duas
coisas: vender ou expor. Num caso o dinheiro é recebido já, noutro o
investimento é rentabilizado. Num caso as obras são usadas para ajudar a
pagar a enorme dívida do BPN, libertando dinheiro para outras coisas,
como o apoio às artes e aos museus - muitos duvidam que o dinheiro
tivesse esse destino, mas esse é um outro debate. Noutro, pensa-se mais a
médio e longo prazo.
Não havendo, na minha opinião, nenhuma questão de
princípio que impedisse esta venda, resta, para além da questão jurídica
(muito relevante), a questão financeira. E é por ela, e apenas por ela,
que me oponho frontalmente a esta venda que em boa hora foi travada.
Diz-me quem percebe da poda que 35 milhões por 85
obras de Miró é ridículo, tendo em conta os valores que os seus
trabalhos costumam atingir. Na realidade, está bastante abaixo dos 150
milhões anunciados, em 2008, por Miguel Cadilhe, quando este dirigia o
BPN. Ou dos 81 milhões declarados, em 2007, para efeitos de seguro. E a
razão para esta diferença pode estar na venda de tantas obras duma só
vez, o que contribuirá para a desvalorização, garantem alguns
especialistas. É um completo absurdo uma venda por atacado, garantem-me.
Apesar de confiar em quem sabe, não sou avaliador de arte e não sei se
têm razão. Mas sei que não se fez nada para valorizar esta coleção. Está
fechada num qualquer armazém há sete anos. Sem, coisa que tem espantado
a imprensa internacional e nos devia espantar a nós todos, os 84
quadros e uma escultura terem sido expostos em Portugal ou no
estrangeiro. Foram para Londres, para ser vendidos, sem nunca terem
visto um raio de luz em Portugal. Ao que parece, não faltam, como é
natural, interessados para expor aquilo que o atual diretor artístico da
coleção Berardo, Pedro Lapa, descreveu, em declarações ao El País, como
uma coleção que reúne "obras de todos os períodos de produção do
artista, algumas delas chave na sua carreira".
A arte valoriza-se quando é exposta. É isso que há a
fazer. Primeiro cá, contribuindo para promover o turismo, uma das
poucas áreas em franco crescimento. Ao que parece, há mecenas preparados
para contribuir para que isso aconteça. Depois no estrangeiro, para
valorizar a coleção. O galerista Cabral Nunes, diretor da Casa da
Liberdade - Mário Cesariny, considera que, em três ou quatro anos, a
coleção gerará mais retorno do que esta venda, no que parece ser
acompanhado por quase todos os especialistas. E a este argumento eu sou
muito sensível. Sendo que depois disto o valor da coleção será
seguramente outro. Ninguém, no seu perfeito juízo, vende uma coleção
completa e coerente, duma só vez, num leilão, de um autor como Miró, sem
nunca a ter exposto. Que o BPN fizesse este tipo de compras e as
mantivesse fechadas em armazéns, não espanta. Por alguma razão deixou o
buraco que deixou. Aconselha-se ao Estado que não cometa os mesmos erros
de um banco falido.
Mas é de dinheiro que estamos a falar, certo? Porque
se é de política cultural, desculpem mas não acompanho a indignação.
Que se valorizem os quadros de Miró e se ponha a coleção a render. Se um
dia valer a pena vender, que se venda. Bem precisamos de dinheiro para
ter artistas a produzir as obras que mais tarde encherão os nossos
museus, galerias, cinemas e teatros
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