Thursday, November 22, 2012

Privatize-se a outro Estado

 O momento da visita de Angela Merkel a Portugal levou-me a parar e sentar-me para escrever qualquer coisa para este moribundo espaço de comentário. O momento em si passa bem sem comentário, afinal os capatazes tudo fizeram para que a patroa evitasse o contacto com a sua obra. O motivo que me despertou foi o conceito que por aí anda de "menos Estado" e de "reformular o papel do Estado".

 Nunca fiz segredo de ser contra o programa de privatizações que se encontrava expresso no memorando de entendimento entre Portugal e os seus credores. O que não posso aceitar é que apenas se fale de empresas responsáveis por bens essenciais (como as águas) ou sectores estratégicos (como energia e transportes). Todos sabemos como a participação de entidades ditas privadas em aspectos essenciais da sociedade, como saúde e rodovias, é feita de forma perfeitamente transparente e sem dolo para o Estado, portanto o que pode correr mal? Nada, até porque o comprador actua de forma perfeitamente autónoma do vendedor, como a venda da EDP à China o demonstrou, ao serem nomeadas figuras inocentes no estado a que o país chegou como Eduardo Catroga ou esse exemplo de ascensão partidária que dá pelo nome de Celeste Cardona (cuja nomeação foi inclusivamente questionada pelo anterior citado). Penso que se costuma dizer qualquer coisa sobre César e a sua esposa, mas este Governo é de machos e portanto esposas de imperadores mortos não servem de exemplo.

 Noutro ponto, será de notar que eu falei em venda da EDP à China e não aos chineses, como se costuma dizer. Ora há uma diferença entre China e Chineses. É que a empresa que comprou a quota do Estado Português na EDP é uma empresa que pertence ao Estado Chinês ou dele depende para avalizar as suas despesas. E falar de vender património à China é falar de vender património a outra entidade muito democrática como o Sultanato de Omã.

 Até agora aprendemos o que o Governo entende por várias coisas. Entendemos que por menos Estado o que se entende é "outro Estado que mande em nós" e aprendemos quais os conceitos de liberdade de expressão e de opinião que querem aplicar a breve prazo em Portugal (aliás liberdade de opinião é outro sinónimo indígena para disciplina de voto, mas isso fica para outra altura).

 No capítulo do vender ao desbarato o que eu não percebo é porque o Governo não vai mais longe do que o que está no memorando. Em todos os outros artigos em que se sodomiza quem trabalha foram bem mais longe do que expresso no documento, porque não irem também neste? Tenho a certeza que imaginação sobre o que privatizar (o ar que respiramos, por exemplo) não faltará a quem se licenciou com distinção e sem equivalências no curso de Economia da Universidade Borjófona (dou um pacote de bolachas a quem adivinhar primeiro como cheguei a este nome), mas aproveito para sugerir algo mais original: privatize-se o Governo! Este Governo já mostrou que, no que toca a defender os interesses nacionais confia tanto em si que entrega sectores estratégicos a potências estrangeiras, no que toca a defender Portugal perante os seus credores, alinha com os credores em vez o fazer com outros países em dificuldades e sendo abertamente privatizado seria o paradigma do capitalismo que defende, ou seja, por uma vez na vida estaria a dar o exemplo daquilo que diz. As vantagens continuam e são extensíveis aos utilizadores. Tal como na escolha do serviço de internet por cabo, passaria a ter ao meu alcance a possibilidade de, passado um ano de fidelização, denunciar o contrato que me liga a este governo, escolhendo assim outro prestador de serviço, ao qual entregaria os meus impostos. Porque me custa muito, mas mesmo muito, pensar que quando vou ao supermercado, de cada euro que lá gasto, 25 cêntimos vão direitinhos para pagar as equivalências do Relvas ou os Audis do Assis.

 Claro que para se vender qualquer coisa é preciso haver quem compre e a questão é quem compra estes governantes? Tirando António Borges, o cordel que liga o fantoche ao saltimbanco, não vejo quem o faça. Borges disse que quem criticou as suas geniais medidas chumbava numa sua cadeira. Basta olhar para a História para perceber que o fundador da Ford chumbava na cadeira de Borges, e como o tipo da Ford até morreu na miséria e só deixou dívidas aos seus sucessores... Não, ninguém que saiba o que trabalhar é poderia comprar estes governantes. Se o Governo fosse um Conselho de Administração de uma empresa já teria sido demitido, de tão brilhantes serem os seus resultados. Infelizmente o Governo não está lá para prestar serviços a quem o elege e assim sendo, privatize-se, ao menos passamos sempre a poder denunciar o contrato não cumprido, sem que para isso dependamos de Cristo voltar à terra para animar a múmia de Belém!

Wednesday, November 14, 2012

Miguel Sousa Tavares explica o ajustamento em curso.


Com quase dois meses de atraso, segue a crónica de Miguel Sousa Tavares. Como me abstenho de seguir o que a pessoa em causa costuma dizer e/ou escrever, este texto passou-me ao lado e só agora as correntes de correio electrónico o fizeram chegar até à minha leitura. Caso a nossa classe dirigente se importasse connosco, seria um óptimo texto para lerem e reflectirem, mas como digo, isso era se nós contássemos para alguma coisa...

Yale, Campo de Ourique

Quando o Governo subiu o IVA de 13 para 23% na restauração, António, temendo as consequências da subida de preços no seu pequeno restaurante de Campo de Ourique, resolveu encaixar ele o aumento, sem o repercutir no preço das refeições. Aguentou até poder, mas mesmo assim a clientela começou a baixar lentamente: parte dela, que lhe assegurava umas trinta refeições ao almoço e metade disso ao jantar, era composta por funcionários públicos, que trabalhavam ali ao lado e cujos salários e subsídios tinham diminuído, como medida destinada a satisfazer as condições do “ajustamento” da economia. Quando reparou que Bernardo, um cliente fiel e diário, tinha passado a frequentar os seus almoços apenas três vezes por semana, António tomou aquilo como sinal dos tempos que aí vinham: sem outra alternativa, despediu a ajudante de cozinha, ficando apenas ele e a mulher no serviço de balcão e mesas e, lá dentro, um cozinheiro sem ajudante. Mas a seguir notou que também Carolina e Deolinda, que vinham almoçar umas três vezes por semana, agora vinham apenas uma e pouco mais comiam do que saladas ou ovos mexidos. Em desespero, teve de subir os preços e Eduardo, um reformado cuja pensão tinha diminuído, desapareceu de vez. Foi forçado a cortar drasticamente nas compras a Francisco, o seu fornecedor de peixe, e a atrasar-lhe os pagamentos: com cinco outros restaurantes, seus clientes, na mesma situação, Francisco viu o seu lucro reduzido a zero e optou por fechar a sua pequena empresa e inscrever-se no Fundo de Desemprego. Mais tarde, quando Gaspar, o ministro das Finanças, anunciou mais um aumento do IRS e declarou que o “ajustamento” não se faria através do consumo interno, também Bernardo desapareceu para sempre e, depois de três meses sentado na sala vazia, dando voltas à cabeça com a mulher e tendo ambos concluído que já era tarde para emigrarem, António tomou a decisão mais triste da sua vida, encerrando o restaurante Esperança de Campo de Ourique e indo os dois engrossar também o rol dos desempregados à conta do Estado. Apesar de ter gasto parte, agora importante, das suas poupanças de anos a anunciar o trespasse, António não conseguiu que ninguém lhe ficasse com o estabelecimento e não lhe restou alternativa senão entregá-lo ao senhorio Henrique, para não ter de pagar mais rendas. Quando desabou, demolidor, o novo aumento do IMI, já Henrique tinha desistido de conseguir alugar o espaço ou mesmo vender o imóvel: não pagou e deixou que as Finanças lhe levassem o prédio. 

Assim se concluiu, neste pequeno microcosmos económico de Campo de Ourique, o processo de “ajustamento” da economia portuguesa: vários trabalhadores reconvertidos à marmita, cinco outros desempregados, duas pequenas empresas encerradas e um senhorio desprovido da sua propriedade. Nessa altura, Gaspar, Rufus e Selassié deram-se conta, com espanto, de várias coisas que não vinham nos livros: que, apesar de aumentarem sistematicamente a carga fiscal, podia acontecer que a receita do Estado diminuísse; que os sacrifícios sem sentido implicavam mais recessão e a recessão custava mais caro ao Estado, sob a forma de mais subsídios de desemprego a pagar; que uma e outra coisa juntas não tinham permitido, ao contrário das suas previsões, diminuir o défice ou a dívida do Estado; e que o que mantinha o país a funcionar não eram as grandes empresas e grupos económicos protegidos, nem sequer os 7% de empresas exportadoras, mas sim os 93% de empresas dirigidas ao mercado interno, que respondiam pela esmagadora maioria dos empregos e atendiam às necessidades da vida corrente das pessoas comuns. E, passeando melancolicamente nos jardins de Yale, numa chuvosa manhã do Thanksgiving, Rufus e Selassié deram com um velho cartaz colado a uma parede, desde os tempos da primeira campanha eleitoral de Bill Clinton: “É a economia, estúpidos!” Miguel Sousa Tavares, no Expresso de 29 de Setembro, 2012