Monday, April 28, 2014

Palavras dos outros: "Num Chega!" - Paulo Baldaia

Paulo Baldaia, no DN de 27 de Abril. Os destaques, como habitual, são meus.

"Num chega!"

A troika sofre da síndrome Teixeira dos Santos. Por mais que se faça, nunca chega. Quando no anterior governo se sucediam os Programas de Estabilidade e Crescimento (PEC), competia ao ministro das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos, aumentar a receita e pressionar os seus colegas do Executivo a cortar na despesa. Os Conselhos de Ministros em que se preparavam esses programas acabavam sempre da mesma maneira, com Teixeira dos Santos a dizer a José Sócrates: "Num chega!"

Agora, passa-se mais ou menos a mesma coisa. Depois de três anos de austeridade, mesmo com sinais de recuperação da economia, a troika visita-nos e repete o slogan: "Num chega!"

Já ninguém fala da espiral recessiva, porque a realidade acabou por desmentir os mais pessimistas, mas os técnicos da troika parecem apostados em contrariar os líderes das instituições para quem trabalham (Lagarde no FMI, Barroso na Comissão Europeia e Draghi no BCE). Aparentemente, para os líderes a austeridade tem limites mas para os funcionários não tem.

O que parece é que a austeridade não tem que ver apenas com dívidas soberanas, estando em curso uma política dos 3 R's que não ajuda nada o ambiente (social). Reduzir salários, através da política salarial e fiscal. Reciclar o papel do Estado, obrigando os contribuintes a gastar uma parte maior do seu salário em despesas com educação, saúde e protecção na velhice. Reutilizar o dinheiro da classe média, pressionando-a a obter crédito na banca, pelo qual pagará juros altos com que o sistema financeiro volta a emprestar, engordando os vencimentos dos executivos e os dividendos dos accionistas.
O problema é que esta nova política dos 3 R's não é uma invenção nacional e, por isso, o seu combate é muito mais difícil, para não dizer quase impossível. Não começou nem agora, nem aqui. A ideia de que o Estado era um empecilho que devorava o dinheiro dos contribuintes ganhou força com Reagan na América dos anos 80 e a globalização tratou do resto.

Os lucros das grandes multinacionais cresceu, o sistema financeiro criou uma infindável liquidez (até ao dia em que os contribuintes tiveram de pagar a reciclagem do sistema) e o trabalho mais barato, em zonas do globo onde reinava a pobreza, pressionou a desvalorização salarial no chamado primeiro mundo.
Portanto, cá estamos com a riqueza dos 85 mais abonados do mundo a valer tanto como o pecúlio dos 3 500 000 mais pobres do planeta. E, em Portugal, com a lista de pobres a engrossar, enquanto "nascem" milionários para quem a riqueza cresce acima dos 10% ao ano.

Estes números não constroem uma teoria da conspiração. Nem sequer se trata de uma questão económica. É uma questão moral que levou o Papa Francisco a dizer: "Já chega!"

Monday, April 14, 2014

Palavras dos Outros: Portugal é Fitch - Paulo Baldaia

O espaço de opinião do DN deu-me, no dia 13 de Abril, um autêntico festim de textos a partilhar. O segundo é de Paulo Baldaia e fala sobre a importância de Portugal estar em vias de, sair da "(co)notação" de lixo, aos olhos da agência Fitch.

Já agora, depois de tudo o que se soube (e o que se imagina) sobre o comportamento das agências de notação, agora voltaram a ser boazinhas e de confiança?

Em Portugal há muita teoria sobre o que não aconteceu mas podia ter acontecido. Com tanto dom de oratória e de escrita podemos viver com paz social no meio da mais grave crise em muitas décadas. Estamos permanentemente em psicanálise uns com os outros.

Portugal é fixe. Tem sol, boas estradas e soberba quanto baste para estar permanentemente a dar lições de moral aos outros. Nós é que sabemos o que é a vida e como ela se gere. Acresce que temos um passado histórico, do tempo em que ligámos os oceanos e não do tempo democrático em que tivemos três resgates, porque esses trazem vergonha. Embora não nos falte capacidade para viver sem vergonha na cara.

Em Portugal é fixe ser do contra, porque se atrai legiões de fãs em tempo de crise e se ganham prémios de consolação pela arte de maldizer. Pelo contrário, reconhecer que algo corre bem serve apenas para ganhar mais um carimbo de vendido ao Governo. Para evitar carimbos, não vale a pena celebrar o olhar positivo com que nos passou a ver a agência de notação que ajuda a compor o título desta crónica.

A verdade é que Portugal começa a ser visto com outros olhos pela Fitch porque empobreceu, ao mesmo tempo que punha alguma ordem nas contas públicas e criava condições para voltar a ter crescimento económico e diminuir o peso da dívida. Portugal é fitch porque a agência se preocupa apenas com rácios de dívida e condições de pagamento, mas a história seria outra se na avaliação da Fitch entrasse o desenvolvimento social.

Um país que precisa da proximidade de eleições para discutir o aumento de um salário mínimo de 485 euros (mais baixo em termos reais do que em 1974) não merece um olhar positivo de quem quer que seja. É um país que, além de aceitar a inevitabilidade da existência de pobres por não terem emprego, aceita que mesmo quem trabalha pode viver na pobreza.

A Fitch não se importa, muitos políticos também não e a maioria dos que vivem a dizer mal do Governo (deste, do que passou e do que vier) nem sequer fazem ideia do que estamos a falar. Está tudo alinhado com a Fitch. Regresse o crescimento económico, o consumo interno, o crédito e a rambóia dos subsídios para a classe média e os pobres voltarão para o esquecimento. Os pobres não têm direitos, só deveres. O dever de sobreviver para figurarem nas estatísticas.
Não se cumpre um dos princípios fundamentais da constituição. Artigo 9.º, alínea d): "[é tarefa fundamental do Estado] promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, (...) mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais".

Não se cumpre, ninguém se importa. Portugal é fitch.

Palavras dos Outros: O trabalho e o salário mínimo - Pedro Marques Lopes

Na senda das citações que iniciei este ano, partilho hoje o texto de Pedro Marques Lopes, no DN de dia 13 de Abril. Ainda é um texto longo, do qual ponderei apenas partilhar os trechos que considero mais significativos. Depois de ponderar cheguei à conclusão que o melhor seria mesmo por tudo, e dar o devido destaque as esses trechos. Segue abaixo, com a devida ligação para o original. 

Esta partilha segue na óptica de que o chavão coelhista de "que se lixem as eleições" já deixou de o ser há muito e que há que começar a preparar 2015. Nunca as condições foram tão boas para o único governo de coligação no pós-1974 que conseguirá cumprir todo um mandato. Uma boa notícia para os partidos envolvidos, uma má notícia para os portugueses.


1- Esqueçamos por um momento o facto de o primeiro-ministro ter dito há menos de seis meses que a subida do salário mínimo iria gerar mais desemprego e que, logo, era uma medida errada. A questão é tão evidentemente provocada pela campanha eleitoral e é tão ao arrepio de tudo o que o Governo vem apregoando - baixar salários é, confessadamente, o objetivo - que não haverá português que não perceba o intuito.
 
Tentemos ter uma conversa mais séria sobre o assunto. 

O debate sobre o salário mínimo é, entre outros aspetos, um excelente exemplo da maneira como as questões económicas se sobrepuseram às políticas e, sobretudo, como alguns olham para a economia não como um instrumento mas como um fim em si mesmo. Mas, mais que tudo, como se tiraram as pessoas, e os seus direitos e valores mais básicos, do centro das decisões que importam à comunidade.
 
Há quem diga que o salário mínimo tem de descer ou mesmo acabar, argumentando que isso não só daria mais competitividade às empresas como contribuiria para a descida do desemprego. Do outro lado, são expostos argumentos sobre o impacto no consumo que uma subida ainda que pequena do salário mínimo provocaria e os benefícios que isto traria para as empresas e a economia.

Não é meu propósito refletir sobre os argumentos económicos, sendo-me porém evidente que empresas que baseiam o seu modelo de negócio em baixos salários numa economia aberta estão condenadas ao fracasso. Como, por outro lado, subir o salário mínimo (os valores de que se fala são perfeitamente equilibrados, é bom que se diga) sem refletir sobre as possíveis consequências imediatas para o tecido empresarial, apenas com o argumento de que uma subida do consumo ajudaria a economia, será tudo menos um comportamento avisado.

Não foi por razões macroeconómicas que se instituiu o salário mínimo, nem essas devem ser centrais na discussão. Muito longe disso.

Andamos esquecidos da verdadeira função do salário mínimo e do que ele representa para as democracias ocidentais: dignidade do trabalho. E a exigência no cuidado dessa dignidade é cada vez maior.

O aspeto essencial, aquele que convém nunca esquecer, é que o salário mínimo visava e visa assegurar que quem trabalha teria não só as suas necessidades básicas satisfeitas, mas também um conforto mínimo. Só um salário que permitisse a um trabalhador viver com dignidade, promoveria e valorizaria o trabalho. No fundo, uma forma de reafirmar o trabalho como fator central entre os outros meios de produção e como pilar fundamental da comunidade. Era, e é, assim vital, que a mais baixa das retribuições garantisse sempre mais que a simples sobrevivência. No limite, asseguraria que quem trabalha não fosse pobre.

Não é, nem nunca foi, o caso português. Portugal é um dos países onde trabalhar não significa sair da pobreza - não será preciso explicar que um agregado familiar, em que os dois cônjuges ganhem o salário mínimo, vive na pobreza.

E o pior é que a tendência para que mais e mais gente ganhe apenas o salário mínimo tem-se acentuado: em 2003, 4,5% da população empregada recebia o salário mínimo; em 2011, esse número subia para quase 11% - falar de produtividade, de motivação ou de valorização do trabalho com o salário mínimo português é quase insultuoso. E esses valores dispararão nos próximos anos. É esse o modelo económico que está a ser seguido e será um aspeto decisivo para um sério retrocesso do nosso país em termos económicos e sociais.

As comunidades europeias procuravam assegurar a importância fulcral do trabalho. O seu papel central na comunidade, com raízes bem fundadas na doutrina social da Igreja e no pensamento social-democrata. A questão da importância do trabalho, da sua ética, foi um dos pontos fundamentais no consenso europeu do pós-guerra e na construção da Europa.

O trabalho não pode ser olhado, apenas, como um bem transacionável. Ele é uma parte fundamental do que nós somos, da nossa personalidade e do nosso lugar na comunidade.

No momento em que o valor do trabalho fosse só o resultado da lei da oferta e da procura, sem limites, uma pessoa não seria distinguível duma soma de dinheiro ou dum terreno arável. O que isso provocaria à comunidade seria devastador. Uma comunidade que não promove o trabalho e que não o valoriza acima de tudo é uma comunidade condenada.

Nunca, como hoje, foi tão importante defender a função social basilar do trabalho e um salário mínimo condigno. É que estão mesmo sob ataque. Ninguém se iluda com propostas de campanha eleitoral.

2- A carga fiscal já representa 41,1% do PIB. A micro- consolidação orçamental alcançada, os ligeiríssimos sinais de melhoria foram alcançados à custa de um aumento brutal da carga fiscal que gerou um empobrecimento, também, brutal dos portugueses. Numa palavra: tanto esforço para nada. E onde é que incidiu o maior crescimento de impostos? Claro, sobre o trabalho.