Tuesday, September 30, 2014

Sobre as Directas: Costa é mesmo melhor que Seguro? (Pedro Tadeu) E agora fale (Pedro Marques Lopes)

A questão das directas entrou, por via do PS, na vida pública portuguesa. Mais pelo mediatismo do segundo partido mais votado do que por motivos históricos, uma vez que outros partidos ja haviam recorrido ao sistema de uma escolha por simpatizantes para os seus cargos (podendo haver outros exemplos, relembro que grande parte da lista do LIVRE às eleições para o Parlamento Europeu foi feita dessa forma).

No entanto a escolha de candidatos está longe de ser unânime. Por um lado é certo que é apelativo e dá um ar de ser coisa diferente. Por outro há os defeitos que Pedro Tadeu expõe no artigo que transcrevo abaixo, publicado na sua coluna de opinião no DN de dia 30 de Setembro e os problemas que Pedro Marques Lopes já havia apontado no dia 29 de Setembro, no mesmo jornal.

Costa é mesmo melhor que Seguro? (por Pedro Tadeu)
O carácter dos líderes políticos é importante? É. Mas quando essa é a única matéria que a política submete ao voto dos eleitores, então estamos perante uma fraude democrática.
Aquilo que se passou no domingo, que deixa o Partido Socialista contente, dada a elevada participação nas suas eleições primárias para primeiro-ministro, aquilo que deixa inúmeros analistas políticos a implorar repetição noutros partidos, por ser um suposto aprofundamento da participação dos cidadãos nos destinos do Estado, vai transformar-se em mais um veneno para a fé democrática do eleitorado.
Que acontecerá quando se repetirem, uma e outra vez, as escolhas abertas à população em geral do ator político mais articulado, mais convicto e mais telegénico de um mesmo e único enredo partidário? Da escolha, em suma, do melhor papagaio para cantar as ideias comuns, os projetos comuns e os programas comuns duma mesma e única organização profissional de conquista do poder? Que acontecerá quando aqueles que, generosamente, acorreram agora às assembleias de voto do PS começarem a perceber que o valor do seu ato cívico é equivalente ao da eleição da Miss Portugal - a substância está, apenas, na aparência?
E que papel restará aos militantes, sem influência real e equiparados a simpatizantes, senão o de calarem o que pensam para reforçarem o vício do carreirismo? Que lhes sobra senão catarem o vento para ficarem do lado favorável ao sopro da última brisa eleitoralista?
Depois da euforia, a inevitável frustração resultará em níveis de abstenção recordistas, não só em primárias mas também, por contágio, em legislativas. Bastam dois ciclos eleitorais. Aposto...
António Costa é melhor que António José Seguro? A maioria parece pensar que sim. É indiferente. A pergunta sufragada deveria ter sido outra: António Costa pensa melhor do que António José Seguro? A resposta, temo, acabaria por ser esta: nem pensa melhor nem pensa pior; na essência, pensa igual.
Se já é difícil encontrar diferenças programáticas (e ideológicas) entre PS, PSD e CDS (e há), escarafunchá-las dentro deste PS (um caldo programático, morno, onde se diluem Manuel Alegre e Francisco Assis) dará sempre um resultado semelhante: um líder híbrido.
Por isso mesmo, vivaço, é que António Costa se recusou a detalhar um projeto para o País, pois se o melhor que tem para dar é um programa de reabilitação urbana, um Ministério da Cultura e uma "leitura inteligente" do Tratado Orçamental, percebe que está a oferecer aos portugueses, apenas e só, mais do mesmo. Igualzinho a Seguro... mas com outro carácter, claro.

E agora fale (por Pedro Marques Lopes)
Foram as primeiras eleições primárias abertas num partido do arco governativo e foi o primeiro teste eleitoral sério, num partido sistémico, a um discurso marcadamente populista.
A boa notícia é a derrota da linha dos "interesses e política", "traições e ambições" e das "reformas do sistema político" metidas à pressão. A má é que, apesar da boa afluência e da ausência de problemas relevantes, a campanha eleitoral não teve conteúdo político e programático rigorosamente nenhum. Não passou duma penosa troca de acusações e insultos, sobretudo da responsabilidade de António José Seguro, a que, em alguns momentos, António Costa não resistiu.
Costa ganhou sem ter de apresentar uma ideia concreta ou a linha do que será a sua oposição. Bastou-lhe aparecer como o contraponto a Seguro. A possibilidade séria que os militantes e os simpatizantes pressentiram de o PS perder para Passos Coelho fez o resto.
António Costa tem de rapidamente mostrar que pode ganhar as eleições. Só isso lhe garantirá a união do partido. E tem, ainda mais depressa, de mostrar que tem mesmo um caminho alternativo. Aos militantes e aos simpatizantes bastou-lhes que aparentasse ser melhor do que Seguro, agora eles e os outros portugueses vão-lhe exigir mais. É que os portugueses pagaram demasiado caro os últimos cheques em branco.

Friday, August 8, 2014

Palavras dos outros, a dobrar - A inexplicável tragédia de entre-os-BES é o fungagá da bicharada, Fernanda Câncio e Aurora Teixeira

Antes do fim-de-semana, sai uma dupla citação para reflexão.

A primeira, da autoria de Aurora Teixeira, foi publicada no Expresso. A segunda é a crónica semanal de Fernanda Câncio no DN. Estão tão relacionadas que achei por bem juntar os títulos. Escusei-me a fazê-lo com o texto, mas os destacados, como de costume, fui eu que fiz.

[por] Aurora Teixeira
Para o ministro da Economia, Pires de Lima, o acontecimento do BES é  'inexplicável '. Segundo o governante, parece inevitável que os investidores, sobretudo os estrangeiros (?!), reajam negativamente tendo de fazer a 'digestão' de tudo aquilo que se passou. Adianta, para nosso desassossego, que está a seguir "com muita atenção o que se está a passar nos mercados"...
As reações internas ao caso BES, sobretudo centradas na  actuação do Banco de Portugal  e do seu Governador, deixam um actor (a meu ver, chave) neste processo, o Goldman Sachs, 'passar pelos pingos da chuva'.
O que parece estar por explicar é a "meteórica passagem" do Goldman Sachs pelo capital qualificado do BES. É de estranhar que o banco norte-americano após ter entrado, em 15 de julho do corrente ano, no capital accionista e ter incentivado outros a investir no BES, contribuindo para uma momentânea valorização das acções deste último, em 23 de julho, ou seja poucos dias antes da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) ter decidido a suspensão da negociação dos títulos em bolsa, tenha vendido mais de 4 milhões de ações do BES.
Tal situação levanta desde logo a suspeição de "insider trading", isto é, negociação de valores mobiliários baseada no conhecimento de informações relevantes que ainda não são de conhecimento público, com o objetivo de auferir lucro ou vantagem no mercado. Apesar da CMVM ter aberto, no dia 1 de agosto, um processo de " investigação aprofundada da negociação dos títulos do BES... para apurar a eventual existência de indícios de violação do dever de defesa do mercado e/ou de crime de utilização de informação privilegiada ", é pouco provável que daqui se retirem algumas consequências relevantes.
Esta atuação do Goldman Sachs no caso BES não representa um evento excepcional. Pelo contrário, a história deste banco norte-americano é pautada de inúmeros 'casos' e passagens por 'portas giratórias' (entre política e finanças) que favorecem o 'insider trading' e o 'inside job'.

Abutres
O Goldman Sachs tem surgido, direta ou indiretamente, relacionado com as mais polémicas operações desde que eclodiu a crise financeira: entre outras, o swap grego ou o caso Abacus.
A troco de uma elevada comissão, a partir de 2002, o Goldman Sachs 'ajudou' a Grécia a encobrir os reais números do défice, através de 'swaps' cambiais com taxas de câmbio fictícias, o que na prática permitiu a este país aumentar a sua dívida sem reportar esses valores a Bruxelas. Em 2005 vendeu os 'swaps' a um banco grego protegendo-se assim de um eventual incumprimento por parte de Atenas. No início de 2010, e ao mesmo tempo que desempenhavam a função de consultores dos Governos, os analistas do Goldman recomendaram aos seus clientes a aposta em 'credit-default swaps' (CDS) sobre dívida de bancos gregos, portugueses e espanhóis. Estes CDS são instrumentos que permitem ganhar dinheiro com o agravamento das condições financeiras de determinado país.
O Abacus foi o nome que o Goldman Sachs deu a um produto financeiro composto por hipotecas subprime de muito má qualidade que supostamente colocou à disposição de um dos seus melhores clientes, o hedge fund de John Paulson, que entretanto apostou contra o produto enquanto os clientes que investiam de verdade no produto sofreram avultadas perdas. Para evitar uma investigação sobre o caso o Goldman Sachs aceitou pagar, em julho de 2010, 550 milhões de dólares (coisa pouca se se tiver em consideração que o hedge fund arrecadou cerca de mil milhões de dólares numa única aposta).
De acordo com o  Wall Street Journal , o Goldman Sachs era, em 2013, o único banco no top 10 (era o 3º) dos designados 'fundos abutre' (vulture funds). Um 'fundo abutre' é um hedge fund que investe em títulos (dívida) considerados muito fracos ou de entidades em iminente default/incumprimento. Mesmo entidades com um elevado nível de alavancagem podem ser alvo de um 'fundo abutre' se existir alguma possibilidade dos seus proprietários não cumprirem a totalidade dos pagamentos. Como o nome indica, estes fundos são como abutres que sobrevoam pacientemente o cadáver, esperando se apoderar do respectivo remanescente. O objectivo é a obtenção de elevados retornos a preços de saldo.

Tartarugas e polvos
O carácter metódico e prudente do Goldman Sachs, complementado por um dos seus lemas - 'apressar-se lentamente' -, valeram-lhe, em tempos, a alcunha de ' tartaruga '. A onda de desregulamentação financeira dos anos 1980 transformou a 'tartaruga' em 'polvo', com diversos ex-proprietários do banco a ocuparem importantes postos políticos em diferentes áreas do governo e em diversos países.
Robert Rubin, ex-diretor do Goldman Sachs, e acérrimo defensor da desregulamentação, foi ministro das Finanças (1995-1999) de Bill Clinton. Henry Paulson, ex-proprietário do Goldman Sachs, principal arquitecto do resgate do sistema bancário, foi ministro das Finanças (2006-2009) de George W. Bush.
Romano Prodi, ex-primeiro ministro italiano, e Mário Draghi, presidente do Banco Central Europeu BCE), tinham sido, respetivamente, conselheiro e vice-presidente do Goldman Sachs para a Europa.
Os tentáculos do Goldman Sachs chegaram também a Portugal.
Carlos Moedas, conhecido como o 'ministro da troika', recentemente escolhido por Passos Coelho para ser o próximo comissário português em Bruxelas, passou pelo Goldman Sachs onde conheceu António Borges que, entre 2000 e 2008, foi Vice-Presidente do Conselho de Administração do Goldman Sachs International e que, em 2012, foi convidado por Passos Coelho a liderar uma equipa que acompanhou, junto da troika, os processos de privatizações, as renegociações das parcerias público-privadas, a reestruturação do sector empresarial do Estado e a situação da banca.
O BES também não escapou. João Moreira Rato, ex-Presidente do Instituto de Gestão do Crédito Público (IGCP), que conta no currículo com uma passagem pelo Goldman Sachs, foi recentemente 'promovido' a administrador financeiro do 'banco bom'/Novo Banco.
Fica-se assim daqui com a ideia de que os que provocaram o incêndio são os mesmos que são chamados para o apagar...
Uma verdadeira tragicomédia. Ironizando, com recurso às palavras do filósofo-cantor português, José Barata Moura, é o fungágá da bicharada! (...)


por Fernanda Câncio

Maria Luís Albuquerque, a 27 de junho, no Parlamento: "Posso dar a garantia de que não vamos ter dinheiro dos contribuintes no BES. Estamos a acompanhar a situação há já largos meses. O Governo tudo tem feito." M.L.A., a 7 de agosto, no Parlamento: "Os contribuintes receberão de volta o seu montante." M.L.A., a 27 de junho, idem: "Quem toma as decisões é o Governo e ninguém mais." M.L.A., a 7 de agosto, ibidem: "A decisão é tomada pelo regulador. Aconselho os senhores deputados a lerem a legislação."
Contradições insanáveis categoricamente proferidas, como é apanágio da responsável (?) das Finanças. E como as explica, enfadada? "Houve uma quantidade de factos novos que vieram a público nos últimos dias." Portanto, andou a garantir que o banco era sólido até meio de julho sem fazer a mínima, mas qual é o problema? Ninguém espere que senhora tão séria admita ter andado a enganar os portugueses e, o que para ela será muito mais grave, os mercados.
Admitir o quê se ontem também foi ao Parlamento o governador do Banco de Portugal assegurar que toda a responsabilidade é sua? "Se houver alguma coisa a criticar, é ao BdP, se houver alguma coisa a elogiar, é ao BdP. O proprietário da solução é o BdP." Solução que, informou os deputados, Carlos Costa só decidiu na sexta - apesar de, no domingo à noite, ter informado o País de que a fraude no BES, constando da descapitalização do banco a favor de empresas do grupo, fora detetada em setembro de 2013. Para além desta revelação espantosa (o regulador sabia de uma fraude e durante um ano permitiu que continuasse, deixando os que a cometeram - é ele que disso os acusa agora apesar de até há pouco lhes ter certificado a idoneidade - em funções até falirem o banco), estamos ante um milagre: é que o Governo aprovou na quinta de manhã, portanto quatro dias antes do anúncio de Costa e um dia e meio antes daquele em que este situa a decisão, o diploma (de imediato aprovado pelo PR) que permitia a tal solução.
Lindo, não? O problema é que isto não configura mera "inverdade". Como apontou na quarta à noite na SicNot[ícias] o socialista Pedro Silva Pereira, a data da aprovação da lei significa que muita gente sabia, nesse dia e até antes (na preparação do diploma), o destino do BES. Evidência disso é o facto de Marques Mendes o ter revelado o sábado na SIC. Quantas mais pessoas tiveram acesso a uma informação que tanto dinheiro valia? Quantas a traficaram? Não se sabe e talvez nunca se saiba. O que sabemos é que Governo e BdP permitiram que as ações do BES se mantivessem em mercado, perdendo, entre quinta e sexta, 62% do seu valor.
Não foi uma ponte que caiu, mas um banco. E até ver não morreu ninguém. Mas a cadeia da responsabilidade é, ao contrário da de Entre-os-Rios, cristalina. Demissões é que nada.

Wednesday, August 6, 2014

Banco Novo, Vida Velha - III

Tendo abordado quem paga a conta no anterior comentário, agora falta saber quem pagará pelo que foi feito. Um buraco como o que o BES apresentou no primeiro semestre, não se cava em seis meses. Nem sequer em seis anos! Leva tempo. Pior do que levar tempo, envolve muita gente. Como escreve Paulo Baldaia, em texto que transcrevo na íntegra abaixo, "não há banco do regime sem regime (...) nem corruptores sem corruptos".

O que pensar então de quem, no dia 29 de Julho, menos de uma semana antes da cisão em "banco bom, banco mau", dizia que "caso venha efetivamente a verificar-se qualquer insuficiência da atual almofada de capital, o interesse demonstrado por diversas entidades em assumirem uma posição de referência no BES indicia que é realizável uma solução privada para reforçar o capital. No limite, se necessário, está disponível a linha de recapitalização pública criada no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira,  que poderá ser utilizada para suportar qualquer necessidade de capital de um banco português, no enquadramento legal relevante e em aplicação das regras de ajuda estatal. Em todo o caso, a solvência do BES e a segurança dos fundos confiados ao banco estão asseguradas.". Quem assina este parágrafo é o Banco de Portugal, uma semana depois de a sua actuação ter sido elogiada pela múmia de Belém. Destaco dois parágrafos, mas realço que a solução de Domingo à noite já começava a ser desvendada aqui. Primeiro, o banco era tão solvente que no dia 4 de Agosto aconteceu o que aconteceu. Depois, podemo-nos perguntar sobre o paradeiro das diversas entidades com interesse em assumirem uma posição de referência no BES. Porque teria sido interessante que se chegassem à frente, antes de o dinheiro dos portugueses ser canalizado para outro banco privado. Se olharmos mais para trás, para o dia 3 de Julho, o mesmo Banco de Portugal dizia que "A situação de solvabilidade do BES é sólida, tendo sido significativamente reforçada com o recente aumento de capital. O Banco de Portugal tem vindo a adotar um conjunto de ações de supervisão, traduzidas em determinações específicas dirigidas à ESFG e ao BES, para evitar riscos de contágio ao banco resultantes do ramo não-financeiro do GES." (É só seguir a ligação anterior e procurar na página.) Ainda bem que era sólida, que faria se não fosse! 

Para não me alongar mais, remato com dois textos, um da autoria de Ferreira Fernandes e publicado no DN de 4 de Agosto e o segundo de Paulo Baldaia, publicado no mesmo espaço no dia 3 de Agosto, ainda antes da confirmação oficial da solução "banco bom, banco mau". Os destacados, em ambos, são da minha responsabilidade.



por FERREIRA FERNANDES

É matemático, chegam os dias de torreira de [A]gosto, a capital abafa e esvazia, e das agências de notícias só pingam frivolidades. É a silly season. A bem chamada estação parva, à falta de notícias há que inventá-las. Ontem, o Carlos Costa, o do Banco dos bancos, resolveu dar uma festa surpresa pela madrugada. Mas à banqueiro: pela madrugada quer dizer às 10.30 da noite e festa surpresa que já fora avisada por um paquete na noite anterior. O anfitrião ofereceu-nos um look arrojado, sobrancelhas em tons mate, contrastando com a cabeleira branca, quase à Lagarde. Era uma soirée à thème, o tema da festa era a crise e o salão decorado a preceito: só dois banquinhos. Um, com cartaz simples e elegante, dizendo Good Bank, e outro, despojado, com um post-it, dizendo Bad Bank. Como até na silly season as más notícias é que são as mais populares, passou-se a noite a olhar para o banquinho mau. Este estava dividido em dois: de um lado, um grupo de cavalheiros; do outro, o Tóino da Reboleira, com fato-macaco, de cujo bolso traseiro pendia um pacote de ações. "São quase uma centena!", proclamava o Tóino aos cavalheiros. Estes batiam-lhe nas costas e diziam: O senhor António é que devia ser o chefe disto, o responsável por nós todos! Não quer ser você a falar ao juiz Carlos Alexandre?" O Tóino começou por hesitar mas aceitou. Convenceram-no de que aquilo é que era ir a um aumento de capital.


por PAULO BALDAIA

Já ninguém está preocupado com a família Espírito Santo e poucos são os que se preocupam com o Governo, os partidos que o apoiam e o regulador. A todos podemos substituir, mas a pancada que volta a sobrar para os portugueses vai doer muito mais do que é possível imaginar.

Esses portugueses são pequenos accionistas, trabalhadores de empresas que acabarão por falir, que dependem de um sistema bancário que passa de bestial a besta e de uma economia que dava sinais de recuperação e que ameaça entrar novamente em depressão. Por muito que a elite pense que sim, a necessidade de o Estado intervir para salvar um banco que julgávamos salvo não é o problema maior.

Este país não tem solução enquanto todos os poderes pactuarem com um sistema que favorece o enriquecimento ilícito, que julga na praça pública por ser incapaz de fazer justiça nos tribunais, que despreza a competência e aplaude o amiguísmo, que se mostra totalmente incapaz de promover a igualdade de oportunidades. Um sistema que recicla os donos disto tudo mas apenas para substituir uns pelos outros.

O capitalismo sem ética, a que aludiu o Papa Francisco como uma das principais chagas do mundo moderno, é que nos tem arrastado de desgraça em desgraça. Agora, que começávamos a pôr a cabeça fora de água, aproximando as nossas despesas das nossas receitas, podemos ter de começar todo o calvário de novo. O pior é que muita gente, muita gente mesmo, não tem como aguentar nova tragédia que obrigue o Governo a cobrar mais impostos, a banca a reter capital e as empresas a despedir.

Tudo isto é mau, muito mau mesmo, mas ainda não é o pior dos pesadelos. Imaginem que Ricardo Salgado, tocado pelas santas palavras do Bispo de Roma, resolve redimir-se do seu capital pecado e confessar o carácter diabólico que presidiu às suas relações nas últimas décadas. É que não há banco do regime sem regime, nem regime sem titulares do poder, nem corruptores sem corruptos. Nós sabemos como, entre as migalhas e os grandes banquetes, muita gente comeu à mesa do último banqueiro.

Se ele se confessa, o colapso que se abateu sobre a família Espírito Santo será de repercussões bem maiores, envolvendo outros banqueiros, empresários que foram apenas testas-de-ferro, milionários de toda a espécie, dezenas ou centenas de políticos, alguns jornalistas e magistrados... Não faço ideia se ficaria pedra sobre pedra e até imagino que esta catarse deixaria mais feridas do que curas, mas, pelo menos, viveríamos na verdade.

Deve ser porque vejo muita gente com medo que Ricardo Salgado conte tudo o que sabe que este pesadelo parece real. Ele, afinal, ainda tem muito poder. A destruição criativa continua nas mãos deste homem.

Tuesday, August 5, 2014

Banco Novo, Vida Velha - II

É certo e adquirido que nada se alterou nem vai alterar nos mercados e na forma como estes são regulados. Nada de fundo no fundo... Sejamos francos a crise, ou as crises, em que vivemos desde 2007 serviu para se aprender muita coisa, mas nunca para se fazer nada que beneficie o comum do cidadão. Aliás, torna-se incrível os contorcionismos, ao nível de contorcionistas de circo, que muitos comentadores fazem para justificar o sistema em que vivemos.

Quanto a mim recuo sempre ao ano de 2006. Nesse ano, em animada conversa com um amigo adepto do mercado desregulado ele explicou-me muito bem as orientações de quem assim pensa: "é tudo privado e quando der buraco o Estado paga." Pode ser chocante, mas é ao mesmo tempo preciso e exacto.

Acho estranho que, face a tantos apelos à tranquilidade que o Coelhinho e a Múmia de Belém fizeram ninguém tenha corrido a limpar as contas no BES. Se eu lá tivesse conta era o que teria feito ao primeiro apelo à calma, quanto mais depois de uma semana de apelos! Quer dizer, se as coisas estavam bem, porquê a necessidade premente de o frisar quase bidiariamente? Como se veio a verificar as coisas não estavam bem e o que ambos disseram não passaram de (mais) aldrabices. 

Agora, o mesmo (des)governo que prometeu tudo e o seu contrário e que, nas palavras de uns, foi contra todas as promessas eleitorais assegura que os contribuintes não vão pagar o buraco do BES. Nisto tem o apoio do Banco de Portugal, o que, a julgar pelos elogios à sua actuação recente, dá uma credibilidade extra à coisa.

Por partes. É discutível que não tenham cumprido nenhuma promessa eleitoral, para isso gostava de ver o programa rebatido ponto a ponto, mas por outro lado, que as acções do Primeiro-Ministro não correspondem às palavras de campanha isso é verídico e basta procurar no Youtube.

Quanto a quem custeará a nova vida do BES, é óbvio que é o contribuinte. Aliás, de tanto ser o contribuinte quem acreditar numa só negação dessa realidade é porque está a tomar chá com o Chapeleiro Louco e com a Alice, no País das Maravilhas. Para isso basta ver a forma Como o Estado vai injetar 4 mil milhões sem nacionalizar o BES (publicado no site do Expresso na sexta-feira dia 1 de Agosto). Como se diz no artigo, "Lendo agora de baixo para cima, percebe-se que são os contribuintes que vão capitalizar o BES: o Estado deve dinheiro à troika que vai financiar o Fundo de Resolução, que por sua vez capitaliza o BES. Formalmente, não é uma nacionalização, uma vez que o Estado não fica com ações do BES." 

Por uma questão de conforto, apesar de recomendar a leitura do artigo, abaixo coloco os três passos descritos no artigo, pela ordem inversa que são apresentados:

3) O Estado empresta dinheiro ao Fundo de Resolução, recorrendo à linha de capitalização da troika para a banca, de que restam ainda 6,4 mil milhões de euros. Sendo emprestado pela troika, este dinheiro é dívida pública, pelo que será pago por contribuintes.

2) O "BES bom" será capitalizado pelo Fundo de Resolução, um fundo que a maioria dos portugueses desconhece, participado por todos os bancos do sistema. Como o Fundo de Reestruturação só tem 182 milhões de euros, precisa de mais.

1) Separa-se o "BES bom" do "BES mau". Os ativos tóxicos ficam no "BES mau", que fica a ser gerido ao longo do tempo de modo a minorar os prejuízos.

Ou então, vejamos a análise de Pedro Tadeu no DN de 5 Agosto, do qual se destaca o grau de confiança que se pode ter no regulador:

Quando domingo passado ouvi Carlos Costa dizer que os capitais do Novo Banco que substitui o BES "não incluem fundos públicos", vêm do Fundo de Resolução que "resultava das contribuições iniciais e periódicas das instituições financeiras e das receitas provenientes da contribuição que incide sobre o setor bancário", imaginei que estava perante uma operação semelhante à de J.P. Morgan no princípio do século passado: a banca organizava-se para se salvar. Era bonito... Mas a frase seguinte do governador do Banco de Portugal tirou-me as cândidas ilusões: "O Fundo teve de contrair um empréstimo temporário junto do Estado português."

Os bancos portugueses, afinal, entram com um duodécimo (repito, um duodécimo) do valor necessário para salvar o BES "bom" e, possivelmente, todo o sistema financeiro português: uns ridículos 380 milhões de euros. O resto dos 4900 milhões vêm do Estado através do tal "empréstimo temporário"(haverá empréstimos não temporários?!) que o contribuinte paga, direta ou indiretamente, à troika. Digamos antes que é uma "nacionalização temporária".
Quando ouvi Carlos Costa dizer que esta operação "não terá qualquer custo para o erário público, nem para os contribuintes", ouvi uma falsidade, pois ninguém pode, neste momento, assegurar esse saldo final. Há, só, essa esperança...

Mas o banco central também assegurava a 11 de julho que "não existem motivos que comprometam a segurança dos fundos confiados ao BES" e ainda na sexta--feira comunicava que "estão reunidas as condições necessárias à continuidade da atividade desenvolvida" pelo BES.

Para quem ainda não está plenamente convencido, veja-se o bonito trecho retirado do blog financeiro do Guardian, na segunda-feira dia 4 de Agosto:



Como é evidente é o contribuinte, aquele que tem andado a pagar empréstimo e juros da troika através de austeridade sem fim, quem suportará isto. Salvo erro o governador do Banco de Portugal não disse nada sobre como decorrerá este empréstimo do Estado à banca. Isso só se soube ontem, dia 4, com a Ministra das Finanças a assegurar novamente que não há riscos para o contribuinte. Claramente não há motivos para desconfiar de tanta segurança... Nem sequer por em Portugal sabermos como normalmente estas operações que não prejudicam o contribuinte decorrem. Basta olhar para o BPN para percebermos!

Também o BPN foi dividido em activos bons e maus, com os bons a terem de ser vendidos depressa para ressarcir o contribuinte. Foi tão célere a venda que, depois de um valor entre os nove mil e os doze mil milhões de euros de dinheiro estatal (alguma vez saberemos quanto custou realmente o BPN?), a parte boa foi vendida por quarenta milhões a uma sociedade de amigos do Dias Loureiro (pessoa que nunca esteve no Governo com ilustres como Cavaco ou Oliveira e Costa e nem sequer pode ser a eles associado), com o Estado assumir ainda as despesas decorrentes dos despedimentos que a "reestruturação" inevitavelmente traria. Ora para quem não percebe muito de números é assim: o Estado meteu lá, na melhor das hipóteses, 9 000 000 000 euros e vendeu por 40 000 000. Basta contar os zeros para perceber quem ficou a arder. Ou basta ver todas as medidas "extraordinárias" que temos sofrido. Por uma questão de paralelismo convém relembrar que também o BPN começou com "apenas" quatro mil milhões de euros de dinheiros públicos. O BES já vai nos seis mil e ainda não passou uma semana sobre a "solução".

Com eleições presidenciais e legislativas para o ano ainda vamos ouvir muitas vezes que não há custos para o contribuinte. Um proto-candidato, o escorregadio cherne-fugitivo já por aí anda a falar sobre "uma pipa de massa". Quanto ao (des)Governo, a única ténue esperança para o contribuinte é mesmo essa acalmia até às eleições. Desde a derrota nas eleições para o Parlamento Europeu que parece que vivemos na terra do leitinho com mel da coligação. O Governo até já promete devolver o que tirou, com grande pompa de novidade, e medidas para aumentar a natalidade, mas  tudo devidamente seguidas da ressalva de "ainda temos de fazer contas". Quem for no canto da serpente merece as dores de daí advirão. Só lamento pelos outros que têm de comer por tabela.

Monday, August 4, 2014

Banco Novo, Vida Velha - I

Em dia de surgir um banco novo na cena bancária portuguesa, muito se tem comentado sobre como o velho banco chegou onde chegou. Não vale a pena preocumarmo-nos com isso. Nada de fundo muda com este novo banco. O sistema bancário não levou nenhuma volta, nem em Portugal nem no mundo. Enquanto o paradigma não mudar todas estas operações são cosmética e limitam-se a empurrar com a barriga o próximo buraco. Nem sequer a solução é inovadora. A separação em "banco bom, banco mau" foi feita com o BPN. O lixo tóxico continua no Estado, a parte boa foi vendido a um banco dos amigos por um valor irrisório (e alegadamente havia quem oferecesse mais...).

Como se questionava e bem Mariana Mortágua, nas sua coluna no Expresso, no dia 1 de Agosto, foi Ricardo Salgado o último banqueiro? Senão vejamos a lista dela:

"Jorge Jardim Gonçalves era, à data, o último banqueiro que era preciso julgar para que o sistema financeiro pudesse, finalmente, voltar ao normal. 
(...)
José Oliveira e Costa era, à data, o último banqueiro que era preciso julgar para que o sistema financeiro pudesse, finalmente, voltar ao normal.
(...)
João Rendeiro era, à data, o último banqueiro que era preciso julgar para que o sistema financeiro pudesse, finalmente, voltar ao normal.
Em [M]aio deste ano Joaquim Goes recebia o prémio carreira atribuido pela Universidade Católica pelo reconhecimento da "sua excecional carreira profissional na área de gestão". No discurso, o premiado recordou João Paulo II, apelou à "solidadariedade desinteressada" do Papa Francisco, e agradeceu aos seus antigos chefes e mentores, Ricardo Salgado e Goes Ferreira. Mais ou menos pela mesma altura, o BES realiza uma operação de aumento de capital, subscrita a 178%, descrita pela comunicação social como um sucesso.
Há dias, Joaquim Goes foi suspenso do cargo de administrador do BES pelo Banco de Portugal. No mesmo processo, é detido o homem que três meses antes tinha homenageado, Ricardo Salgado, acusado de burla e branqueamento de capitais.
(...)
Ricardo Salgado é, hoje, o último banqueiro que é preciso julgar para que o sistema bancário possa, finalmente, voltar ao normal."

No seu romance póstumo, O Leopardo (Il Gattopardo, no original em italiano), Giuseppe Tomasi di Lampedusa diz-nos, pela voz de Tancredi, que "se desejamos que tudo fique na mesma, tudo tem de mudar"("Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi." no original em italiano). A aristocracia bancária, e não me limito aqui à portuguesa, partilha da mesma visão dos aristocratas sicilianos. Quantos mais "últimos banqueiros" terão de haver, quantos mais bancos partidos em "banco bom, banco mau" para que algo mude de facto? Nem se trata aqui de nenhuma bravata. Os Estados Unidos da Grande Depressão fizeram-no, separaram o que era banca especulativa daquela que era a banca comercial, a do típico depósito de poupanças. Ora, ver agora tantos opositores dessa medida a aplaudirem a separação em "banco bom, banco mau", aliás a venderem-na como uma óptima solução, se não fosse trágico (pelos seus efeitos) seria cómico. Para se perceber como nada de novo vem daí, basta ler o verídico remate de Mariana Mortágua:

"Fora da academia, desde o início da crise financeira que governos, Comissão e Conselho Europeus, parlamentos, e bancos centrais foram céleres a aprovar novas regras orçamentais, novos mecanismos de austeridade e, até, novas formas de regulação. As medidas que realmente importam - o fim dos offshores e paraísos fiscais, a separação entre a banca de investimento e a banca comercial ou a erradicação de produtos altamente especulativos - ficaram na gaveta."

Friday, July 25, 2014

Palavras dos Outros - O Biombo, José Manuel Pureza

Por uma vez sinto-me impelido a partilhar na íntegra as palavras de José Manuel Pureza. Estas foram publicadas hoje no DN e basicamente... É isto!

A LP da CP já era. Não, esta crónica não é sobre discos de vinil nem sobre comboios. É sobre uma organização internacional e sobre o sentido da sua existência.
A Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) nasceu na encruzilhada de duas visões e de duas agendas. Uma foi a agenda da nostalgia lusotropicalista. Para ela o colonialismo português foi sempre essencialmente benigno e, mais do que tudo, gerou a miscigenação boazinha de povos e de culturas. Esse suposto excecionalismo histórico-cultural da relação de Portugal com as suas ex-colónias seria, para esta visão, o ativo mais precioso para a negociação da posição de Portugal na Europa. Em síntese, para essa agenda, a CPLP seria uma espécie de sucedâneo das colónias expurgado de colonização formal. A segunda agenda que esteve na génese da CPLP foi a da hegemonia brasileira em crescendo. Animada por outras elites com outra história, esta agenda partilhou com a primeira a noção de excecionalismo do legado do colonialismo português. Mas enquanto a primeira era um recurso defensivo para Portugal, esta era um recurso afirmativo para o Brasil. Não servia para negociar para Portugal outras coisas na Europa mas para afirmar o Brasil como parceiro privilegiado dos países africanos.
A língua portuguesa foi um traço de identidade de ambas as agendas. O que mostra a ambivalência da língua como foco das políticas externas dos Estados que foram ou aspiram a ser dominantes num espaço internacional. Língua de negócios para a construção civil ou para a consultoria jurídica, o português foi também a língua de desenho de imaginários emancipadores por Mia Couto, Pepetela, Valter Hugo Mãe ou Rubem Fonseca. Língua do império, o português foi também língua de resistência ao império.
Uma organização internacional é sempre mais do que os seus propósitos fundadores. Os declarados e os outros. Uma organização alicerçada sobre a ambivalência do papel histórico da língua portuguesa tinha de ter necessariamente como natureza a abertura ao desempenho de diferentes papéis. Tanto o de ser trampolim para novos mercados como o de defender as populações civis da Guiné-Bissau contra as teias destruidoras dos tubarões do narcotráfico internacional, por exemplo.
Chegado aqui, quero dizer com clareza: prefiro mil vezes essa pluralidade em aberto do que a clareza fechada da agenda que nasceu na cimeira de Díli. Ao decidir pela inclusão da petroditadura de Obiang, a CPLP aceitou abandonar a sua matriz fundadora - e a diversidade de lógicas que a animavam - e tornar-se outra coisa totalmente distinta. O critério que permitiu esta inaceitável adesão da Guiné Equatorial torna perfeitamente natural que o Canadá, a Bélgica ou a Argentina, por exemplo, sejam um dia aceites como membros desta tão peculiar comunidade de países "de língua portuguesa". Com duas diferenças: primeira, nenhum deles pedirá para ser membro porque não tem nenhuma necessidade de lavar a sua imagem internacional; segunda, em qualquer deles há incomensuravelmente mais gente que fala português do que na Guiné Equatorial.
Não vejo mal nenhum na existência de uma organização que una Portugal, a Argentina, o Canadá e a Bélgica, claro. Mas para que serviria essa estranha união? E para que serve a estranha união entre a Guiné Equatorial e qualquer dos países fundadores da CPLP? Há uma resposta para esta pergunta e é a pior de todas: para ser biombo e disfarçar a barbárie. Foi esse o mais inquietante sinal que a CPLP deu para fora e para dentro na cimeira de Díli: ela aceita ser uma organização-biombo de ditaduras e de regimes despóticos. Sobre isso deixou de haver qualquer ambivalência.

Monday, July 7, 2014

Palavras dos Outros - Presidente Grande não é Grande Presidente, Nuno Saraiva

Hoje partilho o artigo de Nuno Saraiva no DN de dia 5 de Julho. Apesar de não concordar que alguém com metro e oitenta seja grande, percebe-se a retórica de Nuno Saraiva. O que não se percebe é como alguém ainda leva o nosso Querido Presidente a sério. Pior, como com tudo o que sabe que ele fez e disse, e com o seu historial, alguém ainda o toma como sério.

Presidente grande não é sinónimo de grande Presidente

Foi há pouco mais de uma semana. Sem registo de achaques, fanicos ou camoecas, o Presidente da República, qual peregrino de Nossa Senhora de Fátima - a tal que, em maio de 2013, "inspirou" o fecho da sétima avaliação da troika -, "ajoelhou-se" perante o seu homólogo alemão para acatar a lógica punitiva que encima a liderança merkeliana da Europa.
"Aprendemos a lição dos últimos anos", afirmou o professor Cavaco diante do senhor Gauck. Isto é, na narrativa enunciada agora pelo Chefe de Estado, os portugueses todos, de quem, insiste em afirmar, é o Presidente, foram, durante anos a fio, mandriões, viveram acima das suas possibilidades e às custas dos virtuosos e generosos alemães. E, portanto, os mil e tal dias de expiação violenta dos pecados a que já fomos sujeitos - e que hão de continuar - são justos e merecidos, até porque quem não tem dinheiro não tem vícios, que é como quem diz, casa própria, carro, televisão para ver a bola e as novelas, sofás da Moviflor (roubado ao Pacheco Pereira), os putos na escola e outros luxos, como funcionários públicos bem pagos ou reformados com pensões acima de 700 euros. Tudo conseguido, está bom de ver, à custa do crédito, ou seja, do endividamento.
Definitivamente, Cavaco não tem emenda. Bem sei que talvez fosse pedir demais ao inquilino de Belém que, como Matteo Renzi no Parlamento Europeu, recordasse ao senhor Gauck que a Alemanha só é hoje uma economia pujante e que cresce porque, em 2003, quando foi pioneira na violação do défice inscrito no Pacto de Estabilidade e Crescimento, a União Europeia condescendeu na flexibilização das regras. Isto para já não falar da solidariedade europeia, traduzida em perdões, na era da reconstrução do após-guerra ou no tempo da reunificação alemã. Já que não lhe passou sequer pela cabeça citar os seus próprios roteiros no que à incapacidade de pagar a nossa dívida diz respeito, de acordo, naturalmente, com as regras estabelecidas no Tratado Orçamental, e que por isso têm fatalmente de ser revistas, bastava apenas que tivesse ficado em silêncio, em vez de nos ter sujeitado a nova humilhação.
Cavaco Silva é homem de metro e oitenta. Mas isso faz dele, apenas, um Presidente grande. Não um grande Presidente. E esse pormenor da perspetiva com que se olha para a estatura faz toda a diferença. Nos últimos dias, aliás, a dimensão cavaquista ficou evidente, mais uma vez, em dois momentos distintos.
Primeiro, ao ignorar o prémio internacional com que Carlos do Carmo foi distinguido. É certo que não é um Óscar ou sequer um Nobel da Literatura. É só um Grammy Latino, coisa sem importância, pela excelência da carreira de mais de 50 anos. Cavaco é assim, politicamente pequenino, politicamente rancoroso, politicamente mesquinho. Tal como já acontecera, por exemplo, na morte de Saramago, o Presidente da República foi incapaz de mostrar nobreza e afirmar-se orgulhoso por mais este feito de um embaixador da cultura portuguesa. E tudo porque Carlos do Carmo não faz parte da corte cavaquista, e não hesita em criticar frontalmente e em público os defeitos políticos de Cavaco. Ser Presidente de todos os portugueses é saber conviver com as diferenças e com a crítica, felicitando todos os que se destacam e não apenas aqueles que o bajulam.
E depois houve o Conselho de Estado. Mais uma vez, Cavaco Silva está preocupado, sobretudo, com o seu lugar na história. Apelar a "consensos", "compromissos", "pontes de diálogo construtivo" entre partidos, a um ano de eleições legislativas, ainda para mais com o Partido Socialista feito em frangalhos é, obviamente, politicamente desleal e irrealista. Serve, tão-só, o propósito para que o Presidente possa prosseguir a construção da sua narrativa favorita. Ou seja, que avisou, que tudo fez para que as forças políticas do chamado "arco da governação" se comprometessem num pacto, e que não foi por falta de ter tentado ou por sua responsabilidade que isto, eventualmente, não acontecerá.
Como escreveu nesta semana o embaixador Seixas da Costa, "com o devido respeito, o espaço nos livros de História não se ganha desta forma".

Tuesday, July 1, 2014

A Comissão Europeia, pós eleições para o Parlamento 2014 (Parte 2)

Escrevo estas linhas depois da proposta, pelo Conselho Europeu, de Juncker para presidente da Comissão Europeia. Não poderia ser de outra forma, goste-se ou não do homem e do seu comportamento enquanto presidente do Eurogrupo.

Escrevo estas linhas sem saber o que se passa na primeira reunião do novo Parlamento Europeu. Não sei se propôs, e se o fez, o que propôs Juncker fazer enquanto presidente da Comissão. Sei de umas palavras vagas sobre empreendedorismo, sobre inovação, sobre desemprego jovem (como se o desemprego de velhos com mais de 40 anos não fosse um problema). Não sei de nada. No entanto o Parlamento vai votar nele. Já o assumiram.

O que esperava, feita a nomeação, era que o Parlamento, antes de validar a escolha do Conselho, o ouvisse e votassem a visão e o projecto do homem.

Juncker está longe de ser um nome consensual. É um homem que desagrada a eurofóbicos, por ter sido presidente do Eurogrupo, por ser considerado um federalista, por ser a favor de mais Europa. É, pelas mesmas razões, um homem que desagrada a eurófilos, aqueles europeístas que não se revêm na actual União, que pedem e clamam por mais igualdade e mais democracia no processo decisório e que nestes dias tão injustamente são catalogados como eurocépticos. Só aqueles que esperam que nada mude, na esperança que tudo fique na mesma se alegram e regozijam com a provável eleição.

Todo o eurodeputado que votar em Juncker terá responsabilidades sobre as posições da Comissão nos próximos quatro anos. De cada vez que um deputado se levantar no Parlamento para criticar a posição da Comissão, deverá pensar como votou e porque votou nessa Comissão. O futuro para uma melhor União passa por mais união entre Parlamento e Comissão, não por maior subserviência da Comissão aos desmandos do Conselho. Seria bom que a próxima Comissão procurasse e encontrasse mais pontes com o Parlamento e que o Conselho ficasse mais e mais com a devida responsabilidade pelas decisões catastróficas que toma. Talvez nesse dia percebêssemos que quem escolhemos nas Legislativas é tão importante para o nosso lugar na Europa, como aqueles que escolhemos nas Europeias.

Friday, June 27, 2014

A Comissão Europeia, pós eleições para o Parlamento 2014


A grande questão que se negoceia neste momento em Bruxelas é saber quem será o próximo presidente da Comissão Europeia. Como resultado do Tratado de Lisboa, é de esperar que o Conselho, ao nomear o presidente da Comissão, tenha em linha de conta o resultado das eleições para o Parlamento Europeu. O objectivo desta medida é fazer com que o processo de nomeação de uma Comissão se assemelhe mais ao de nomeação de um Governo. Com vista a isto, as principais famílias parlamentares europeias apresentaram os candidatos que os seus partidos apoiariam. Este foi um momento único e fomentou inclusivamente vários debates com os candidatos.

Pode ter acontecido que em Portugal andássemos distraídos com conversas sobre tudo menos Europa. Afinal o importante era perguntar, como n'"A Vida de Brian", o que é que a Europa alguma vez fez por nós? Estranhamente, as respostas quase poderiam ser a mesmas do famigerado episódio!

Assim sendo, vamos só fazer um apanhado. Pelo Partido Popular Europeu (representado em Portugal por PPD e CDS, que concorreram como a coligação Aliança Portugal), concorria Jean Claude Juncker, antigo presidente do Eurogrupo. Pelo S&D, a Aliança dos Socialistas e Democratas (representado em Portugal pelo PS), concorria Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu. Pelo ALDE, Aliança dos Liberais e Democratas Europeus (representado em Portugal, antes das eleições pelo PDA, e que viria a acolher posteriormente os dois deputados do MPT) concorria Guy Verhofstadt, antigo Primeiro-Ministro belga e uma das figuras mais apreciadas pela corrente euro-reformista. Pelo GUE-NGL, Grupo da Esquerda Europeia Unida-Esquerda Nórdica Verde (representado em Portugal pelo BE e pelo PCP), concorria o grego Alexis Tsipras. Pelos Verdes (apesar de ninguém em Portugal ter manifestado a sua intenção de integrar este grupo, talvez pela temática o PAN e, por Rui Tavares ter integrado este grupo, o LIVRE, pudessem ter integrado a nova composição) havia a candidatura bicéfala de José Bové e Ska Keller, um francês e uma alemã. Feitas as apresentações, saltemos para os resultados. Sem um partido que se destaque dos outros, o vencedor foi o PPE, com a eleição de aproximadamente 214 assentos. Assim sendo, o nome que, atendendo aos resultados das eleições para o Parlamento Europeu, o Conselho deveria propôr seria o de Jean Claude Juncker.

Até aqui tudo bem, mas foi aqui que a porca torceu o rabo. Alguns países, com o Reino Unido à cabeça, começaram a questionar que Jean Claude Juncker seja o mais indicado para o lugar. Inclusivamente houve quem alegasse que a nomeação de Jean Claude Juncker seria um acto anti-democrático.

Não pretendo aqui discorrer sobre a adequação ou não de Jean Claude Juncker ao lugar de Presidente da Comissão Europeia, simplesmente pretendo manifestar que se Jean Claude Juncker não for o nome proposto pelo Conselho, os países que não o apoiarem no Conselho deverão sair da União no instante seguinte. O avançar de nomes para Presidente da Comissão aconteceu pela primeira vez. Alegar que Jean Claude Juncker não é o homem adequado, nestas condições, seria como a coligação PPD-CDS propôr um nome para Primeiro-Ministro e o Presidente dizer que não e de seguida impôr ele um nome, fazendo tábua rasa de toda a campanha eleitoral. Se não for esse o caso, digam-me, em quantos boletins de voto estavam impressos o nomes de Cavaco Silva e António Guterres, os de José Sócrates e Durão Barroso ou o de Passos Coelho? Sabem a resposta? Nenhum. Os nomes que lá estavam eram os dos partidos e eles só foram chamados a fazer um Governo após os seus partidos terem ganho eleições.

Está certo que o processo não é vinculativo, mas se no momento em que há uma efectiva e clara tentativa de abertura (mesmo que a eficiência possa ser questionada) aos cidadãos, os Governos desses cidadãos a matam, então, desculpem-me meus senhores não estão aqui a fazer nada. Os Governos que assim comportam são aquilo que em português chamamos de tipos que não fazem nem saem de cima. Essa arte é magistralmente jogada pelo Reino Unido desde o momento zero da adesão, e Cameron está a jogá-la novamente. Ou como na década de oitenta uma comédia inglesa tão bem demonstrou http://vimeo.com/85914510.


Wednesday, June 18, 2014

Palavras dos Outros: E no futebol é o menos - Ferreira Fernandes

Ferreira Fernandes, numa das curtas crónicas do DN, usa o jogo de abertura do Mundial para fazer o diagnóstico de um país. Como apregoo o que ele diz há algum tempo, nem me vou alongar mais no comentário. Como habitual, os destacados são meus.
E no futebol é o menos
Leon Trotsky, o revolucionário russo que falhou o poder, pode não parecer a pessoa mais adequada para citar. Ele é o chefe político da primeira revolução russa, a de 1905, e sai dela sozinho; ele é o chefe militar da segunda revolução russa, a de 1917, e sai dela indefeso. Um derrotado, pois. Mas ele é tão inteligente (e escreve tão bem) que vale a pena ouvi-lo mais do que aos outros seus colegas pela mesma razão que faz a opinião de José Quitério sobre uma omeleta ser mais importante do que a opinião da galinha. Disse Trotsky: "A tragédia da revolução mundial é a tragédia da liderança da revolução mundial." Como interessa pouco a revolução mundial, desbastemos o irrelevante. E fica: a tragédia é a falta de líderes. Podia ser a divisa de Portugal. Na política do País, na direção das empresas e no assunto que agora nos anima, perdão, desanima. Um dia destes, a seleção portuguesa foi para o intervalo perdendo pesadamente - já aí, nos 45 minutos anteriores, com as teimosias nas escolhas e tolices nos comportamentos era nítida a falta de liderança. Mas há um retrato mais flagrante, é a saída do balneário. Quem estivesse incomunicável para o mundo nos últimos dez anos e, agora, no sofá, via os jogadores sem garra a regressar ao relvado, exclamaria: "O Scolari já não é o treinador!" É toda a diferença entre um líder, mesmo sargentão, e um furriel amanuense. Por cá manda quem não lidera. E no futebol é o menos.

Friday, May 23, 2014

Palavras dos outros: Obrigado, cidadão, obrigado - Ricardo Araújo Pereira

Publicado na Visão a 22 de Maio, um muito original apelo ao voto. O primeiro parágrafo mostra como o problema da abstenção tem mais a ver com a forma como encaramos a cidadania e a vida política. De seguida há um desfilar das consequências que votar tem tido nos últimos anos. Como de costume, os destacados são meus.

Obrigado, cidadão, obrigado

Começam a ouvir-se vozes a favor do voto obrigatório. Mesmo os proprietários das vozes são a favor do voto obrigatório. Se fossem apenas vozes teria menos valor político, embora talvez fosse mais interessante do ponto de vista do esoterismo. O problema é este: os cidadãos têm pouca vontade de votar. Quando a democracia era nova ainda acorriam às urnas em bom número, mas agora as eleições tornaram-se rotineiras e já não os atraem como antigamente. Uma das soluções, acho eu, era apimentar a relação com uma novidade qualquer. Por exemplo, mudar de posição política. A maior parte dos eleitores vota sempre da mesma maneira. É natural que o acto eleitoral se torne aborrecido. Por outro lado, os candidatos podiam tornar-se um pouco mais sedutores e atenciosos. Normalmente, pretendem apenas atrair-nos à cabina de voto, e depois passam quatro ou cinco anos sem nos dizer nada. Nem um postal, nem um telefonema, nada. O eleitor sente-se sujo, e não volta a cair na esparrela.

Para evitar a abstinência dos eleitores, há quem proponha o voto obrigatório. Os cidadãos portugueses precisam de um estímulo para cumprir os seus deveres. O problema das facturas com número de contribuinte ficou resolvido por meio da atribuição de prémios; o problema da abstenção pode resolver-se por meio da aplicação de castigos. Faz sentido que os métodos sejam diferentes. Atribuir prémios a quem vota seria estranho, uma vez que estamos muito habituados a não ganhar nada com o voto. O choque seria demasiado grande. No entanto, a aplicação de castigos também acarreta problemas: a multa por não ir votar tem de ser muito avultada, na medida em que os portugueses costumam pagar um preço bastante elevado por ir votar. Pagámos quando elegemos as pessoas que criaram o problema do BPN, pagámos quando elegemos as pessoas que criaram o problema da dívida, pagámos quando elegemos as pessoas que criaram o problema do desemprego. A multa tem de ser mesmo muito elevada para que não ir votar nos saia mais caro do que ir às urnas. Caso contrário, a abstenção continua a ser mais atraente.

Pessoalmente, admito a multa para quem não vota desde que se institua igualmente uma multa para quem vota, penalizando o sentido do voto. O cidadão votou duas vezes no Sócrates? Paga uma multa. Votou quatro ou cinco vezes no Cavaco? Paga outra multa. Votou no Passos Coelho? Paga uma multa e faz trabalho comunitário. A ver se estes eleitores aprendem.

Monday, May 5, 2014

Palavras dos Outros: Foi você que pediu uma política de verdade? - Pedro Marques Lopes

Pedro Marques Lopes, no DN de dia 4 de Maio. Os destacados, como habitualmente, são meus.


"Não são medidas que incidam em matéria de impostos, salários ou pensões", Passos Coelho.

O que leva um primeiro-ministro a apresentar um Documento de Estratégia Orçamental que desdiz completamente o que há quinze dias garantia? Que passará pela cabeça do maior responsável pela condução dos destinos duma comunidade, quando num dia são anunciados aumentos de impostos e contribuições, e, no dia seguinte, ele diz que não houve aumento nenhum?

Há quem diga que não vale a pena perder tempo a analisar os constantes ziguezagues do primeiro-ministro; que o importante é refletir sobre as medidas concretas. Este tipo de raciocínio tem alguma lógica, provavelmente não a que quem o exprime pensa. De facto, a capacidade de o primeiro-ministro dar o dito pelo não dito, de recuar e avançar, de prometer e esquecer é tão avassaladora, que é sempre melhor esperar pela atuação propriamente dita. Mais, e como ficou provado na entrevista que deu à SIC, Passos Coelho é capaz, mesmo de, no espaço de alguns minutos, dizer tudo e o seu contrário com uma descontração desconcertante. O problema é a total descredibilização da personagem que tem este tipo de atuação, ainda para mais num momento em que vivemos um período de crise tão profunda económica e institucional. Ter um primeiro-ministro em que não é possível acreditar é pior do que ter um mau primeiro-ministro. Infelizmente, Passos Coelho tem os dois defeitos. Um líder que no espaço de quinze dias muda radicalmente de opinião em assuntos tão relevantes para a comunidade tem um problema grave. E, claro está, o problema passa a ser nosso.

Fica, pela enésima vez, pornograficamente exposto que não há, não houve, nem haverá qualquer plano para a reforma do Estado; que as fusões, extinções, consultadorias de serviços do Estado que iam gerar poupanças de 1400 milhões de euros são uma fantasia (e se fosse verdade, porque se teria esperado três anos para as fazer?), gorduras do Estado, pois, pois; que as únicas medidas que o Governo tem para nos apresentar são subidas de impostos e contribuições ou cortes nos salários e pensões; que a nova tabela de remunerações da função pública é a de Sócrates; que os cortes provisórios são, espanto dos espantos, definitivos - o grupo de sábios que ia estudar a reforma da Segurança Social deve estar ausente em parte incerta ; que o salário mínimo afinal vai descer quando era suposto subir.

Mas a deterioração na confiança entre representantes e representados, a sensação de que tudo o que se diz ou anuncia pode ser mudado no minuto seguinte, a evidência de que quem governa não tem um plano, não tem estratégia ou acredita no último tipo inteligente que ouve são sintomas tão graves como as próprias medidas em si.

Todos conhecemos, infelizmente, promessas de campanha não cumpridas, súbitas mudanças de opinião, bruscas alterações de políticas. Há, normalmente, uma justificação, uma razão mais ou menos legítima, a ocorrência dum qualquer facto superveniente. O próprio Passos Coelho, numa atitude que elogiei neste mesmo espaço, teve a dignidade em 2010 de pedir desculpas aos portugueses por ter aprovado o PEC III contra o que tinha prometido. Onde vai esse tempo? Agora, em quinze dias nega as suas próprias promessas. Agora, cria uma névoa tal de afirmações e contradições que chega a ser impossível fazer uma análise do seu discurso, que é inviável encontrar uma lógica de raciocínio, uma linha condutora. Não há quem não esteja saturado de tantas medidas anunciadas com pompa e circunstância que nunca vieram a concretizar-se por simples incompetência, por ignorância chocante da realidade ou por outra razão qualquer. É por estas e por outras, aliás, que estão enganados os que pensam que há a mínima hipótese de o DEO contribuir para um melhor desempenho eleitoral da Aliança Portugal: nada pior do que a perda de confiança do eleitor, uma vez perdida não é recuperável.

A falta de previsibilidade na atuação dos agentes políticos, o facto de nunca estarmos seguros se estas ou aquelas medidas vão ser implementadas geram uma desconfiança generalizada na comunidade. É evidente que não há memória de tão grande desprezo pela verdade, pelos cidadãos, pelas próprias instituições democráticas, e isso penalizará, como é lógico, mais Passos Coelho e o Governo, mas desengane-se quem pensar que isto não se arrasta para todo o sistema e a todos os intervenientes no processo político.

Esta semana adubou-se abundantemente, mais uma vez, o campo onde nasce toda a descrença na democracia, todo o ódio aos políticos, toda a aparição de salvadores.

Monday, April 28, 2014

Palavras dos outros: "Num Chega!" - Paulo Baldaia

Paulo Baldaia, no DN de 27 de Abril. Os destaques, como habitual, são meus.

"Num chega!"

A troika sofre da síndrome Teixeira dos Santos. Por mais que se faça, nunca chega. Quando no anterior governo se sucediam os Programas de Estabilidade e Crescimento (PEC), competia ao ministro das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos, aumentar a receita e pressionar os seus colegas do Executivo a cortar na despesa. Os Conselhos de Ministros em que se preparavam esses programas acabavam sempre da mesma maneira, com Teixeira dos Santos a dizer a José Sócrates: "Num chega!"

Agora, passa-se mais ou menos a mesma coisa. Depois de três anos de austeridade, mesmo com sinais de recuperação da economia, a troika visita-nos e repete o slogan: "Num chega!"

Já ninguém fala da espiral recessiva, porque a realidade acabou por desmentir os mais pessimistas, mas os técnicos da troika parecem apostados em contrariar os líderes das instituições para quem trabalham (Lagarde no FMI, Barroso na Comissão Europeia e Draghi no BCE). Aparentemente, para os líderes a austeridade tem limites mas para os funcionários não tem.

O que parece é que a austeridade não tem que ver apenas com dívidas soberanas, estando em curso uma política dos 3 R's que não ajuda nada o ambiente (social). Reduzir salários, através da política salarial e fiscal. Reciclar o papel do Estado, obrigando os contribuintes a gastar uma parte maior do seu salário em despesas com educação, saúde e protecção na velhice. Reutilizar o dinheiro da classe média, pressionando-a a obter crédito na banca, pelo qual pagará juros altos com que o sistema financeiro volta a emprestar, engordando os vencimentos dos executivos e os dividendos dos accionistas.
O problema é que esta nova política dos 3 R's não é uma invenção nacional e, por isso, o seu combate é muito mais difícil, para não dizer quase impossível. Não começou nem agora, nem aqui. A ideia de que o Estado era um empecilho que devorava o dinheiro dos contribuintes ganhou força com Reagan na América dos anos 80 e a globalização tratou do resto.

Os lucros das grandes multinacionais cresceu, o sistema financeiro criou uma infindável liquidez (até ao dia em que os contribuintes tiveram de pagar a reciclagem do sistema) e o trabalho mais barato, em zonas do globo onde reinava a pobreza, pressionou a desvalorização salarial no chamado primeiro mundo.
Portanto, cá estamos com a riqueza dos 85 mais abonados do mundo a valer tanto como o pecúlio dos 3 500 000 mais pobres do planeta. E, em Portugal, com a lista de pobres a engrossar, enquanto "nascem" milionários para quem a riqueza cresce acima dos 10% ao ano.

Estes números não constroem uma teoria da conspiração. Nem sequer se trata de uma questão económica. É uma questão moral que levou o Papa Francisco a dizer: "Já chega!"

Monday, April 14, 2014

Palavras dos Outros: Portugal é Fitch - Paulo Baldaia

O espaço de opinião do DN deu-me, no dia 13 de Abril, um autêntico festim de textos a partilhar. O segundo é de Paulo Baldaia e fala sobre a importância de Portugal estar em vias de, sair da "(co)notação" de lixo, aos olhos da agência Fitch.

Já agora, depois de tudo o que se soube (e o que se imagina) sobre o comportamento das agências de notação, agora voltaram a ser boazinhas e de confiança?

Em Portugal há muita teoria sobre o que não aconteceu mas podia ter acontecido. Com tanto dom de oratória e de escrita podemos viver com paz social no meio da mais grave crise em muitas décadas. Estamos permanentemente em psicanálise uns com os outros.

Portugal é fixe. Tem sol, boas estradas e soberba quanto baste para estar permanentemente a dar lições de moral aos outros. Nós é que sabemos o que é a vida e como ela se gere. Acresce que temos um passado histórico, do tempo em que ligámos os oceanos e não do tempo democrático em que tivemos três resgates, porque esses trazem vergonha. Embora não nos falte capacidade para viver sem vergonha na cara.

Em Portugal é fixe ser do contra, porque se atrai legiões de fãs em tempo de crise e se ganham prémios de consolação pela arte de maldizer. Pelo contrário, reconhecer que algo corre bem serve apenas para ganhar mais um carimbo de vendido ao Governo. Para evitar carimbos, não vale a pena celebrar o olhar positivo com que nos passou a ver a agência de notação que ajuda a compor o título desta crónica.

A verdade é que Portugal começa a ser visto com outros olhos pela Fitch porque empobreceu, ao mesmo tempo que punha alguma ordem nas contas públicas e criava condições para voltar a ter crescimento económico e diminuir o peso da dívida. Portugal é fitch porque a agência se preocupa apenas com rácios de dívida e condições de pagamento, mas a história seria outra se na avaliação da Fitch entrasse o desenvolvimento social.

Um país que precisa da proximidade de eleições para discutir o aumento de um salário mínimo de 485 euros (mais baixo em termos reais do que em 1974) não merece um olhar positivo de quem quer que seja. É um país que, além de aceitar a inevitabilidade da existência de pobres por não terem emprego, aceita que mesmo quem trabalha pode viver na pobreza.

A Fitch não se importa, muitos políticos também não e a maioria dos que vivem a dizer mal do Governo (deste, do que passou e do que vier) nem sequer fazem ideia do que estamos a falar. Está tudo alinhado com a Fitch. Regresse o crescimento económico, o consumo interno, o crédito e a rambóia dos subsídios para a classe média e os pobres voltarão para o esquecimento. Os pobres não têm direitos, só deveres. O dever de sobreviver para figurarem nas estatísticas.
Não se cumpre um dos princípios fundamentais da constituição. Artigo 9.º, alínea d): "[é tarefa fundamental do Estado] promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, (...) mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais".

Não se cumpre, ninguém se importa. Portugal é fitch.

Palavras dos Outros: O trabalho e o salário mínimo - Pedro Marques Lopes

Na senda das citações que iniciei este ano, partilho hoje o texto de Pedro Marques Lopes, no DN de dia 13 de Abril. Ainda é um texto longo, do qual ponderei apenas partilhar os trechos que considero mais significativos. Depois de ponderar cheguei à conclusão que o melhor seria mesmo por tudo, e dar o devido destaque as esses trechos. Segue abaixo, com a devida ligação para o original. 

Esta partilha segue na óptica de que o chavão coelhista de "que se lixem as eleições" já deixou de o ser há muito e que há que começar a preparar 2015. Nunca as condições foram tão boas para o único governo de coligação no pós-1974 que conseguirá cumprir todo um mandato. Uma boa notícia para os partidos envolvidos, uma má notícia para os portugueses.


1- Esqueçamos por um momento o facto de o primeiro-ministro ter dito há menos de seis meses que a subida do salário mínimo iria gerar mais desemprego e que, logo, era uma medida errada. A questão é tão evidentemente provocada pela campanha eleitoral e é tão ao arrepio de tudo o que o Governo vem apregoando - baixar salários é, confessadamente, o objetivo - que não haverá português que não perceba o intuito.
 
Tentemos ter uma conversa mais séria sobre o assunto. 

O debate sobre o salário mínimo é, entre outros aspetos, um excelente exemplo da maneira como as questões económicas se sobrepuseram às políticas e, sobretudo, como alguns olham para a economia não como um instrumento mas como um fim em si mesmo. Mas, mais que tudo, como se tiraram as pessoas, e os seus direitos e valores mais básicos, do centro das decisões que importam à comunidade.
 
Há quem diga que o salário mínimo tem de descer ou mesmo acabar, argumentando que isso não só daria mais competitividade às empresas como contribuiria para a descida do desemprego. Do outro lado, são expostos argumentos sobre o impacto no consumo que uma subida ainda que pequena do salário mínimo provocaria e os benefícios que isto traria para as empresas e a economia.

Não é meu propósito refletir sobre os argumentos económicos, sendo-me porém evidente que empresas que baseiam o seu modelo de negócio em baixos salários numa economia aberta estão condenadas ao fracasso. Como, por outro lado, subir o salário mínimo (os valores de que se fala são perfeitamente equilibrados, é bom que se diga) sem refletir sobre as possíveis consequências imediatas para o tecido empresarial, apenas com o argumento de que uma subida do consumo ajudaria a economia, será tudo menos um comportamento avisado.

Não foi por razões macroeconómicas que se instituiu o salário mínimo, nem essas devem ser centrais na discussão. Muito longe disso.

Andamos esquecidos da verdadeira função do salário mínimo e do que ele representa para as democracias ocidentais: dignidade do trabalho. E a exigência no cuidado dessa dignidade é cada vez maior.

O aspeto essencial, aquele que convém nunca esquecer, é que o salário mínimo visava e visa assegurar que quem trabalha teria não só as suas necessidades básicas satisfeitas, mas também um conforto mínimo. Só um salário que permitisse a um trabalhador viver com dignidade, promoveria e valorizaria o trabalho. No fundo, uma forma de reafirmar o trabalho como fator central entre os outros meios de produção e como pilar fundamental da comunidade. Era, e é, assim vital, que a mais baixa das retribuições garantisse sempre mais que a simples sobrevivência. No limite, asseguraria que quem trabalha não fosse pobre.

Não é, nem nunca foi, o caso português. Portugal é um dos países onde trabalhar não significa sair da pobreza - não será preciso explicar que um agregado familiar, em que os dois cônjuges ganhem o salário mínimo, vive na pobreza.

E o pior é que a tendência para que mais e mais gente ganhe apenas o salário mínimo tem-se acentuado: em 2003, 4,5% da população empregada recebia o salário mínimo; em 2011, esse número subia para quase 11% - falar de produtividade, de motivação ou de valorização do trabalho com o salário mínimo português é quase insultuoso. E esses valores dispararão nos próximos anos. É esse o modelo económico que está a ser seguido e será um aspeto decisivo para um sério retrocesso do nosso país em termos económicos e sociais.

As comunidades europeias procuravam assegurar a importância fulcral do trabalho. O seu papel central na comunidade, com raízes bem fundadas na doutrina social da Igreja e no pensamento social-democrata. A questão da importância do trabalho, da sua ética, foi um dos pontos fundamentais no consenso europeu do pós-guerra e na construção da Europa.

O trabalho não pode ser olhado, apenas, como um bem transacionável. Ele é uma parte fundamental do que nós somos, da nossa personalidade e do nosso lugar na comunidade.

No momento em que o valor do trabalho fosse só o resultado da lei da oferta e da procura, sem limites, uma pessoa não seria distinguível duma soma de dinheiro ou dum terreno arável. O que isso provocaria à comunidade seria devastador. Uma comunidade que não promove o trabalho e que não o valoriza acima de tudo é uma comunidade condenada.

Nunca, como hoje, foi tão importante defender a função social basilar do trabalho e um salário mínimo condigno. É que estão mesmo sob ataque. Ninguém se iluda com propostas de campanha eleitoral.

2- A carga fiscal já representa 41,1% do PIB. A micro- consolidação orçamental alcançada, os ligeiríssimos sinais de melhoria foram alcançados à custa de um aumento brutal da carga fiscal que gerou um empobrecimento, também, brutal dos portugueses. Numa palavra: tanto esforço para nada. E onde é que incidiu o maior crescimento de impostos? Claro, sobre o trabalho.

Monday, March 31, 2014

Tanta gente a querer trabalhar e temos de ler isto.

Henrique Raposo é uma figura com a qual só concordo no benfiquismo. Em tudo o resto é uma personagem pouco ou nada recomendável. Mesmo quando diz coisas acertadas, faz questão de lhes juntar umas barbaridades valentes, tão típicas do portuguezinho que fez um estágio "lá fora" e que quando chega acha que isto é tudo dele. Acho que também já passei por isso, mas depois cresci.

Do texto que publicou no seu blog no Expresso e que se intitula "Um rapaz de 17 já pode trabalhar, um homem de 50 ainda pode recomeçar", ele vai do ajuízado de considerar que "diabolizámos o ensino profissional que dava a chave do mercado de trabalho a jovens de 17 anos que queriam começar cedo a vida adulta" para logo de seguida começar a dissertar que "Em 2012, cerca de 55% dos reformados da função pública tinha menos de 60 anos".

Ora, o que está em causa para o Heinrich (ele gaba-se de ter sido assim tratado num estágio que fez na Alemanha) é que "[Repare-se] na concepção de sociedade que estava aqui em cima da mesa: apenas 30 anos de trabalho entre os 25 e os 55 e a ideia de que a reforma tinha de chegar cedo.". Sejamos gentis para com o Heinrich. Alguém com 55 em 2012 foi nascido no ano de 1957 e celebrou o seu 17º aniversário nesse ano maldito, para os henriquinhos, de 1974. Eu vou acreditar que na grande maioria não estamos a falar de licenciados. Arrisco mais. Se calhar quando chegaram aos 25, que para o raposeta são o paradigma de início da vida no nosso contexto de sociedade, já levavam uns anos de descontos em cima. Se tiver mais de 55 e menos de 60, e sendo homem, andava a fazer turismo à conta do Estado. Ou assim os Heinrichs devem encarar aquela passeata da Guerra Colonial...

Um dos nossos dramas, enquanto sociedade, é precisamente como colocamos certos valores ao serviço dos mercados, essa besta mitológica do século XXI, mas que ronda pelo menos desde o XIX. No caso, a tendência de nos tratarmos como uma mercadoria. Será chocante que alguém que trabalhe 30 anos queira usufruir de 30 anos de reforma? Será sequer considerar isto um crime de lesa pátria? O que é a reforma? Será apenas o aguardar da morte? Será que devemos indexar a idade da reforma à esperança de vida apenas para premiar os que pela sua saúde, e quiçá uma profissão menos desgastante, conseguem passar essa barreira? Seremos a partir do momento em que saímos da escola, apenas mais uma matéria prima, porquinhos mealheiros sem direitos e só deveres? Esta revolta toda é o quê, inveja? E nesse ponto, inveja de quê? Não seria muito melhor querermos ser iguais pela positiva, pelo permitir que todos possam usufruir de 30 anos de reforma depois de 30 anos de trabalho? 

No final, caros Heinrichs desta vida, esses desempregados de 50 anos, que passam 3 anos a subsídio porque ninguém os quer e que depois se desdobram para pagar contas, não são vítimas do odiado Estado (que é o mesmo que dizer de todos nós). Eles trabalham e trabalharam muito mais do que vocês algum dia o fizeram ou farão. Eles querem de facto recomeçar, mas não do zero. Não têm, ou não deveriam de fazer! O que eles sofrem na pele é a visão dos vossos adorados Mercados, do privado, do lucro fácil e imediato que mais não vê nas pessoas do que meras matérias-primas, bens transacionáveis, macacos de apertar porcas, não seres pensantes, com uma história de vida e experiências acumuladas. Que lhes neguem isso acaba por não surpreender. Que ainda os culpem e os instiguem contra outros é no mínimo deplorável...