Monday, January 26, 2015

Je suis... de retour!

Um mês longe de todo o barulho de jornais e fogos de artifício permite-nos dar alguma perspectiva às coisas importantes. Um mês longe, num país que tem um conjunto de valores semelhante aqueles com que crescemos, ajuda-nos a não perder de vista o que realmente abala a nossa forma de ser. Três semanas volvidas, o primeiro comentário do ano é mesmo para o atentado de Paris.

Três semanas dão para muita coisa e com tanto que já foi dito sinceramente acho que não vou acrescentar nada de relevante. Acontece que desde que o soube que sinto necessidade de me libertar de um peso, uma espécie de exercício catártico, em parte porque ao contrário de muitos milhões eu já conhecia o jornal antes de tão macabro acontecimento apesar de o não assinar nem comprar. Sinceramente tirando algum exemplar que um colega francês tivesse deixado na sala do café, dificilmente o teria lido. O que nunca questionei foi o direito a que o jornal existisse e seguisse a linha editorial que seguia. Nem o farei agora com renovado entusiasmo. A verdadeira vitória dos terroristas será mudarmos a nossa atitude pelo que fizeram. O desprezo das gentes civilizadas será a sua maior derrota. Só que, como podemos ignorar o que sucedeu?

Por um lado espero que isso não mude com a equipa nova, mas claro que isso é mais fácil de se desejar quando não se estava lá. Tento imaginar-me a ir para o trabalho depois de ver uma dúzia de colegas mortos a tiro apenas por fazerem o seu trabalho. Sinceramente, pouco importa se gostava deles, se achava que eram bons ou maus profissionais, isso ia alterar a forma como eu encarava o acto de ir para o trabalho. Se eu fosse um polícia muçulmano que se opôs à barbárie e por isso foi fuzilado, a forma como mexia comigo ainda seria pior. Desta tragédia surgiram duas formas de ser. O já famoso Je Suis Charlie e o menos conhecido Je Suis Ahmed (o nome do polícia fuzilado era Ahmed Merabet). O segundo infelizmente é menos falado e isso pode ser fatal.

Por um lado há o estar do lado daquilo que reconhecemos como valores fundamentais da nossa sociedade. Daí que o facto de se dizer "je suis Charlie" não signifique qualquer identificação com o jornal, antes significa que reconhecemos o direito de um jornal como aquele existir, especialmente quando discordamos dele. Se a Europa e os valores ocidentais assentam em séculos de moral cristã, então convém não esquecer Mt 5, 43-45: Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus, pois que Ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos. Para aqueles que discordam e não se contentam em orar pelos inimigos, a nossa civilização também criou tribunais e leis. O único tipo de acção que posso entender que feche um jornal é acção judicial. Alguns não hesitarão em lembrar que a justiça também se engana. Pois engana, mas queremos viver com os erros dessa justiça, ou às mãos de malucos com armas?

Um outro erro é o de generalizar os malucos a toda uma religião. A sociedade deve fazer mais face ao radicalismo islâmico ou à cada vez maior simpatia que movimentos de extrema direita colhem? Será mais perigoso um radical islâmico ou um votante radical cristão no Midwest americano que defende o direito a andarmos com automáticas na rua? Ahmed Merabet era muçulmano e defendia as leis da República Francesa. Apesar de não se chamar Jean ou Pierre, Ahmed era francês. Não adianta colocar o enfâse em se o Islão é uma religião de paz ou não. O que é importante destacar é que para Ahmed Merabet e muitos outros muçulmanos, aquilo que o Islão é ou deixa de ser não colide com as leis e os valores da República Francesa. Aliás, mesmo quando essa República os nomeia como inimigos e se serve da religião que eles praticam como desculpa para passar leis que atentam a liberdade religiosa, mesmo assim, eles lá aparecem no dia seguinte para trabalhar e fazer cumprir as leis.

Ahmed Merabet e os malucos que cometeram os atentados tinham duas coisas em comum. Eram todos muçulmanos e eram todos franceses. Convém nas discussões que se tenha que ambos esses factos sejam tidos em conta sob pena de cairmos no retrocesso civilizacional de voluntariamente abdicarmos de liberdades que demoraram anos e sangue a ser conseguidas. Esse seria o verdadeiro triunfo dos terroristas, que mudássemos a nossa sociedade de tal forma que tirando o nome de uma e outra, na essência ambas seriam o mesmo. Exemplos históricos não nos faltam, e com a sombra do Nazismo e do Estalinismo a pairarem sobre a Europa, seria bom que não nos deixássemos levar pelas emoções a quente.