Friday, May 23, 2014

Palavras dos outros: Obrigado, cidadão, obrigado - Ricardo Araújo Pereira

Publicado na Visão a 22 de Maio, um muito original apelo ao voto. O primeiro parágrafo mostra como o problema da abstenção tem mais a ver com a forma como encaramos a cidadania e a vida política. De seguida há um desfilar das consequências que votar tem tido nos últimos anos. Como de costume, os destacados são meus.

Obrigado, cidadão, obrigado

Começam a ouvir-se vozes a favor do voto obrigatório. Mesmo os proprietários das vozes são a favor do voto obrigatório. Se fossem apenas vozes teria menos valor político, embora talvez fosse mais interessante do ponto de vista do esoterismo. O problema é este: os cidadãos têm pouca vontade de votar. Quando a democracia era nova ainda acorriam às urnas em bom número, mas agora as eleições tornaram-se rotineiras e já não os atraem como antigamente. Uma das soluções, acho eu, era apimentar a relação com uma novidade qualquer. Por exemplo, mudar de posição política. A maior parte dos eleitores vota sempre da mesma maneira. É natural que o acto eleitoral se torne aborrecido. Por outro lado, os candidatos podiam tornar-se um pouco mais sedutores e atenciosos. Normalmente, pretendem apenas atrair-nos à cabina de voto, e depois passam quatro ou cinco anos sem nos dizer nada. Nem um postal, nem um telefonema, nada. O eleitor sente-se sujo, e não volta a cair na esparrela.

Para evitar a abstinência dos eleitores, há quem proponha o voto obrigatório. Os cidadãos portugueses precisam de um estímulo para cumprir os seus deveres. O problema das facturas com número de contribuinte ficou resolvido por meio da atribuição de prémios; o problema da abstenção pode resolver-se por meio da aplicação de castigos. Faz sentido que os métodos sejam diferentes. Atribuir prémios a quem vota seria estranho, uma vez que estamos muito habituados a não ganhar nada com o voto. O choque seria demasiado grande. No entanto, a aplicação de castigos também acarreta problemas: a multa por não ir votar tem de ser muito avultada, na medida em que os portugueses costumam pagar um preço bastante elevado por ir votar. Pagámos quando elegemos as pessoas que criaram o problema do BPN, pagámos quando elegemos as pessoas que criaram o problema da dívida, pagámos quando elegemos as pessoas que criaram o problema do desemprego. A multa tem de ser mesmo muito elevada para que não ir votar nos saia mais caro do que ir às urnas. Caso contrário, a abstenção continua a ser mais atraente.

Pessoalmente, admito a multa para quem não vota desde que se institua igualmente uma multa para quem vota, penalizando o sentido do voto. O cidadão votou duas vezes no Sócrates? Paga uma multa. Votou quatro ou cinco vezes no Cavaco? Paga outra multa. Votou no Passos Coelho? Paga uma multa e faz trabalho comunitário. A ver se estes eleitores aprendem.

Monday, May 5, 2014

Palavras dos Outros: Foi você que pediu uma política de verdade? - Pedro Marques Lopes

Pedro Marques Lopes, no DN de dia 4 de Maio. Os destacados, como habitualmente, são meus.


"Não são medidas que incidam em matéria de impostos, salários ou pensões", Passos Coelho.

O que leva um primeiro-ministro a apresentar um Documento de Estratégia Orçamental que desdiz completamente o que há quinze dias garantia? Que passará pela cabeça do maior responsável pela condução dos destinos duma comunidade, quando num dia são anunciados aumentos de impostos e contribuições, e, no dia seguinte, ele diz que não houve aumento nenhum?

Há quem diga que não vale a pena perder tempo a analisar os constantes ziguezagues do primeiro-ministro; que o importante é refletir sobre as medidas concretas. Este tipo de raciocínio tem alguma lógica, provavelmente não a que quem o exprime pensa. De facto, a capacidade de o primeiro-ministro dar o dito pelo não dito, de recuar e avançar, de prometer e esquecer é tão avassaladora, que é sempre melhor esperar pela atuação propriamente dita. Mais, e como ficou provado na entrevista que deu à SIC, Passos Coelho é capaz, mesmo de, no espaço de alguns minutos, dizer tudo e o seu contrário com uma descontração desconcertante. O problema é a total descredibilização da personagem que tem este tipo de atuação, ainda para mais num momento em que vivemos um período de crise tão profunda económica e institucional. Ter um primeiro-ministro em que não é possível acreditar é pior do que ter um mau primeiro-ministro. Infelizmente, Passos Coelho tem os dois defeitos. Um líder que no espaço de quinze dias muda radicalmente de opinião em assuntos tão relevantes para a comunidade tem um problema grave. E, claro está, o problema passa a ser nosso.

Fica, pela enésima vez, pornograficamente exposto que não há, não houve, nem haverá qualquer plano para a reforma do Estado; que as fusões, extinções, consultadorias de serviços do Estado que iam gerar poupanças de 1400 milhões de euros são uma fantasia (e se fosse verdade, porque se teria esperado três anos para as fazer?), gorduras do Estado, pois, pois; que as únicas medidas que o Governo tem para nos apresentar são subidas de impostos e contribuições ou cortes nos salários e pensões; que a nova tabela de remunerações da função pública é a de Sócrates; que os cortes provisórios são, espanto dos espantos, definitivos - o grupo de sábios que ia estudar a reforma da Segurança Social deve estar ausente em parte incerta ; que o salário mínimo afinal vai descer quando era suposto subir.

Mas a deterioração na confiança entre representantes e representados, a sensação de que tudo o que se diz ou anuncia pode ser mudado no minuto seguinte, a evidência de que quem governa não tem um plano, não tem estratégia ou acredita no último tipo inteligente que ouve são sintomas tão graves como as próprias medidas em si.

Todos conhecemos, infelizmente, promessas de campanha não cumpridas, súbitas mudanças de opinião, bruscas alterações de políticas. Há, normalmente, uma justificação, uma razão mais ou menos legítima, a ocorrência dum qualquer facto superveniente. O próprio Passos Coelho, numa atitude que elogiei neste mesmo espaço, teve a dignidade em 2010 de pedir desculpas aos portugueses por ter aprovado o PEC III contra o que tinha prometido. Onde vai esse tempo? Agora, em quinze dias nega as suas próprias promessas. Agora, cria uma névoa tal de afirmações e contradições que chega a ser impossível fazer uma análise do seu discurso, que é inviável encontrar uma lógica de raciocínio, uma linha condutora. Não há quem não esteja saturado de tantas medidas anunciadas com pompa e circunstância que nunca vieram a concretizar-se por simples incompetência, por ignorância chocante da realidade ou por outra razão qualquer. É por estas e por outras, aliás, que estão enganados os que pensam que há a mínima hipótese de o DEO contribuir para um melhor desempenho eleitoral da Aliança Portugal: nada pior do que a perda de confiança do eleitor, uma vez perdida não é recuperável.

A falta de previsibilidade na atuação dos agentes políticos, o facto de nunca estarmos seguros se estas ou aquelas medidas vão ser implementadas geram uma desconfiança generalizada na comunidade. É evidente que não há memória de tão grande desprezo pela verdade, pelos cidadãos, pelas próprias instituições democráticas, e isso penalizará, como é lógico, mais Passos Coelho e o Governo, mas desengane-se quem pensar que isto não se arrasta para todo o sistema e a todos os intervenientes no processo político.

Esta semana adubou-se abundantemente, mais uma vez, o campo onde nasce toda a descrença na democracia, todo o ódio aos políticos, toda a aparição de salvadores.