Para quem ainda desconhece a data, e tenho-me cruzado com várias pessoas que o desconhecem, dia 29 de Setembro há eleições autárquicas. Consideradas compreensivelmente como a face mais próxima da política, há quem veja nelas uma certa aura que as diferencia da "distante" política nacional. Claro que em ano de eleições, as primeiras em que vigora a limitação de mandatos, surgiu logo a oportunidade de se ver que essa diferença não poderia estar mais longe da realidade.
Chamei aqui, com a limitação de mandatos, a lei 46/2005, uma lei de dois artigos e três parágrafos. Ainda se pode pensar que o português empregue assume aquela forma de legalês que precisa de um lápis, um caderno de anotações e uma noite em branco para ser decifrado, mas, aos meus olhos de leigo, dificilmente poderia ser mais acessível e mais simples. Passo pois a transcrever o texto da mesma, para quem não quis seguir a ligação acima:
Lei n.º 46/2005, de 29 de Agosto
Estabelece limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais
A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º
Limitação de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais
1—O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos, salvo se no momento da entrada em vigor da presente lei tiverem cumprido ou estiverem a cumprir, pelo menos, o 3.º mandato consecutivo, circunstância em que poderão ser eleitos para mais um mandato consecutivo.
2—O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia, depois de concluídos os mandatos referidos no número anterior, não podem assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido.
3—No caso de renúncia ao mandato, os titulares dos órgãos referidos nos números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia.
Artigo 2.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2006.
Seguem-se as datas de aprovação, promulgação e referendo.
Enquanto escrevo estas linha a página do parlamento não me permite aceder ao Diário da Assembleia da República do terceiro trimestre de 2005, por forma a ver o que foi debatido e quem votou (e como) a supra-citada lei.
Ora, reconhecendo na lei um certo paralelismo com a limitação de mandatos do Presidente da República (que salvo erro está consagrada na Constituição), qualquer destas figuras, que a voz corrente trata por dinossauros autárquicos, iria para casa gozar a sua sabática e voltaria daí a quatro anos, se tal desejasse. Só que tal não foi o desejo de muitos! Encorajados pelos aparelhos partidários, vai de concorrer à câmara do lado. Quando os tribunais ameaçaram bloquear à partida estas candidaturas, mais uma vez os aparelhos dos partidos acorreram em massa, garantindo mundos e fundos e recursos até que a decisão dos tribunais se assemelhasse a algo mais de acordo com o interesse em ocupar um cargo público ad eternum.
Pelos vistos a língua portuguesa, mais do que um acordo ortográfico, necessita de chegar a acordo sobre o que as palavras querem dizer. Digo-o porque houve juízes que validaram candidaturas que violam os princípios que eu interpreto nesta lei. Pode ser que seja preciso ver as palavras à luz do "espírito da lei". Ora esta lei não foi feita para que se incentivasse a renovação da classe política? Ora esta lei não existe para que seja mais fácil a todos terem acesso, mesmo que em teoria, à possibilidade de exercerem um cargo público? Dessa forma, como pode haver, quer lendo a letra, quer tendo em conta o espírito da lei, um juíz que valide candidaturas de candidatos que violam esta lei?
Torna-se difícil fazer aqui uma defesa da nossa justiça e de quem a deve aplicar! Um juíz que complica uma lei tão simples, para lá de levantar suspeitas quanto ao seu engajamento político, presta um mau serviço à justiça. Esta lei existe para que caras novas e/ou ideias novas surjam. No limite da desilusão, serve a presente lei para que um cidadão se ofereça a si mesmo um mês ou um mandato de inocência, um tempo em que haja a ilusão de que "estes são diferentes".
Diferença essa que um autarca que acede a este mecanismo não se esforça por esbater. Tão mau como o juíz que o valida é o autarca que recorre a este expediente. O autarca que a tal recorre revela a sua personalidade de lapa, uma criatura tão agarrada ao lugar que recorre a todos os expedientes para lá ficar. Um autarca que recorre a estes expedientes é uma sanguessuga, pronta a chupar os recursos em seu redor para massajar um ego e/ou encher umas contas bancárias. Os portugueses que votarem nesta gente são cúmplices dos seus crimes futuros, e moralmente condenáveis por o fazerem. Podem ter o direito, mas não têm qualquer réstia de moral para vir reclamar depois, isto porque votaram plenamente conscientes do que esses candidatos tinham para oferecer: uma constante busca pelo buraco legal e a deturpação da lei, para proveito próprio.
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