Friday, February 7, 2014

Palavras dos Outros: Não se vendam os quadros de Miró... baratos - Daniel Oliveira

Daniel Oliveira, dia 5 no seu blog do Expresso

Há, a propósito do leilão cancelado da coleção de 85 obras de Miró, três debates diferentes: o jurídico, o político e o financeiro.

O jurídico parece esclarecido: apesar do Tribunal Administrativo ter recusado a providência cautelar do Ministério Público para parar a venda, confirmou que os procedimentos impostos pela Lei de Bases do Património Cultural não tinham sido cumpridos e que a "expedição das obras é manifestamente ilegal". As obras viajaram ilegalmente para Londres, onde estão expostas, sem terem a autorização da Direcção-Geral do Património Cultural para saírem de Portugal. Uma autorização que, é bom lembrar, não é um mero procedimento burocrático. Defende o país do saque.

Nestas condições, só por uma completa irresponsabilidade é que a Christie's realizaria o leilão. Cabe à leiloeira verificar que tudo está em ordem. Não verificou e só ela pode ser responsabilizada pelo cancelamento no próprio dia. Ela e, obviamente, a Parvalorem, empresa do Estado que ficou com as ruínas do BPN e que tentou vender este espólio contornando uma lei que é, e bem, em todos os países desenvolvidos, muito restritiva no que toca ao comércio de obras de arte. Tendo sido a Christie's a cancelar o leilão, não vejo como possa vir a exigir a indemnização contratual.

Agora a questão política. Neste caso, política cultural. A coleção de Miró não ia ser incinerada ou destruída. Ia ser vendida, coisa que acontece regularmente a obras de arte. Não haveria, na minha opinião, uma perda para a cultura. Quanto a Portugal, perderia as obras que faziam parte do espólio de um banco em troca de dinheiro. E é costume nada vergonhoso estarem entre as coisas que se vendem obras de arte. Como sabem os galeristas.

Estes quadros são, para o Estado português, um ativo. Foram comprados ao colecionador japonês Kazumasa Katsuta. E estão tão bem aqui como em qualquer outro lugar. Ao contrário dos quadros que julgo que o BPN ainda tem de Vieira da Silva e Júlio Pomar, não há entre o autor ou estas obras e Portugal nenhuma relação especial. Nem especial, nem outra, para dizer a verdade. Não é património nacional. As obras foram compradas por um banco, como investimento, que foi nacionalizado e calhou que o Estado ficasse com elas. Com elas pode, sem ferir nenhum princípio ético, político ou legal, fazer uma de duas coisas: vender ou expor. Num caso o dinheiro é recebido já, noutro o investimento é rentabilizado. Num caso as obras são usadas para ajudar a pagar a enorme dívida do BPN, libertando dinheiro para outras coisas, como o apoio às artes e aos museus - muitos duvidam que o dinheiro tivesse esse destino, mas esse é um outro debate. Noutro, pensa-se mais a médio e longo prazo.

Não havendo, na minha opinião, nenhuma questão de princípio que impedisse esta venda, resta, para além da questão jurídica (muito relevante), a questão financeira. E é por ela, e apenas por ela, que me oponho frontalmente a esta venda que em boa hora foi travada.

Diz-me quem percebe da poda que 35 milhões por 85 obras de Miró é ridículo, tendo em conta os valores que os seus trabalhos costumam atingir. Na realidade, está bastante abaixo dos 150 milhões anunciados, em 2008, por Miguel Cadilhe, quando este dirigia o BPN. Ou dos 81 milhões declarados, em 2007, para efeitos de seguro. E a razão para esta diferença pode estar na venda de tantas obras duma só vez, o que contribuirá para a desvalorização, garantem alguns especialistas. É um completo absurdo uma venda por atacado, garantem-me. Apesar de confiar em quem sabe, não sou avaliador de arte e não sei se têm razão. Mas sei que não se fez nada para valorizar esta coleção. Está fechada num qualquer armazém há sete anos. Sem, coisa que tem espantado a imprensa internacional e nos devia espantar a nós todos, os 84 quadros e uma escultura terem sido expostos em Portugal ou no estrangeiro. Foram para Londres, para ser vendidos, sem nunca terem visto um raio de luz em Portugal. Ao que parece, não faltam, como é natural, interessados para expor aquilo que o atual diretor artístico da coleção Berardo, Pedro Lapa, descreveu, em declarações ao El País, como uma coleção que reúne "obras de todos os períodos de produção do artista, algumas delas chave na sua carreira".

A arte valoriza-se quando é exposta. É isso que há a fazer. Primeiro cá, contribuindo para promover o turismo, uma das poucas áreas em franco crescimento. Ao que parece, há mecenas preparados para contribuir para que isso aconteça. Depois no estrangeiro, para valorizar a coleção. O galerista Cabral Nunes, diretor da Casa da Liberdade - Mário Cesariny, considera que, em três ou quatro anos, a coleção gerará mais retorno do que esta venda, no que parece ser acompanhado por quase todos os especialistas. E a este argumento eu sou muito sensível. Sendo que depois disto o valor da coleção será seguramente outro. Ninguém, no seu perfeito juízo, vende uma coleção completa e coerente, duma só vez, num leilão, de um autor como Miró, sem nunca a ter exposto. Que o BPN fizesse este tipo de compras e as mantivesse fechadas em armazéns, não espanta. Por alguma razão deixou o buraco que deixou. Aconselha-se ao Estado que não cometa os mesmos erros de um banco falido.
 
Mas é de dinheiro que estamos a falar, certo? Porque se é de política cultural, desculpem mas não acompanho a indignação. Que se valorizem os quadros de Miró e se ponha a coleção a render. Se um dia valer a pena vender, que se venda. Bem precisamos de dinheiro para ter artistas a produzir as obras que mais tarde encherão os nossos museus, galerias, cinemas e teatros

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